O Nosso Reino - Valter Hugo Mãe
"como deus também deve ter assim uma varanda, enorme e a toda a volta, com vista para todas as terras que criou, e deve ficar ponderando que coisa optámos certa ou errada. talvez nos preste atenção agora, se estamos tão mais perto do céu no topo da escola. talvez nos ouça e nos perdoe de todo o mal que fizemos ou representámos. benjamim, deus são as coisas todas, e em todas elas nos escuta. deus és tu. não sou eu. se fosse, queria que todas as pessoas morressem de imediato com a garantia de entrarem no paraíso. porque esta vida é só pecado, espera e incerteza. se eu fosse deus, só haveria paraíso."
O Nosso Reino - Valter Hugo Mãe
Valter Hugo Mãe tem este dom de desumanizar tudo o que achamos belo à nossa volta, através das suas palavras belas e poéticas que escondem verdades duras e intenções profundas. Cria, neste ‘O Nosso Reino’, uma alegoria sobre a vida e a morte, a relação com Deus e a ingenuidade de ver o mundo aos olhos de uma criança.
Benjamin é, como o nome indica, uma criança, um pequeno aprendiz de adulto, inocente nos seus actos e fortemente condicionado pelo contexto social e familiar em que vive. A sua família é, como muitas do Portugal da altura da Revolução do 25 de Abril, pobre e religiosa, a começar pela avó que enche a casa de crucifixos. É por isso que Benjamin, aos 8 anos, sente o peso da religiosidade sobre os seus ombros, assumindo um desejo condicionado de ser santo: o modelo perfeito da sua pequena aldeia e, claro, o orgulho da sua família disfuncional.
‘O Nosso Reino’ espelha esta relação de um criança com Deus, procurando constantemente entender os seus desígnios, ignorando que nem os adultos o conseguiam e acreditando na salvação e na proximidade à divindade através da abdicação de qualquer prazer. Condiciona a sua existência de acordo com o que considera serem os princípios da santidade, tornando-se um milagre na aldeia e procurando levar consigo o melhor amigo. Uma criança solitária em busca de algo que não compreende, mas em que acredita com toda a fé que lhe foi transmitida.
Mas não se consegue ser santo sem se ser diabo também, e Benjamin vai percebê-lo por entre a sua ingenuidade e inexperiência, na tentativa de manter a santidade depois de alcançado esse estatuto. É um caminho só e nem sempre é justo, porque nem sempre Deus cumpre o que dele esperamos. Temos o direito de nos revoltar contra a sua subjectividade, contra a fé que nele depositámos.
Benjamin vê na morte algo inexplicável, um medo que lhe dá a volta ao estômago. A perda, o sofrimento de que o ser humano é alvo - no fundo, é o reflexo de um primeiro impacto do contacto directo com a ideia de morte, personalizada na figura do “homem mais triste do mundo”, o coveiro da aldeia que leva as almas para o além. Um medo gerado pela incompreensão, pela incapacidade de fugir ao destino e pelo desespero de se fazer tudo em nome da santidade e, em lugar da felicidade, ser-se recompensado com a tristeza e a dor.
Este ambiente opressivo da religião, excessiva na educação desta criança, é muito bem descrito por Valter Hugo Mãe, que aqui narra a história como uma criança de oito anos, mas há luz de muitos anos de experiência já vivida. A culpa que sente pela sua incapacidade de ser mais santo, ou em nome de um Deus que não lhe dá qualquer explicação, coloca a personagem principal e o leitor, em simultâneo, nesta ambiguidade muito própria da existência humana.
E Valter Hugo Mãe fá-lo através de uma escrita tão bela e tão dura, tão genuína, que nos deixa pregados à história. Um primeiro romance que mostra já a construção de uma voz muito própria, muito poética e intimista, que nos faz reflectir nestas dicotomias da vida e na qualidade inquestionável da literatura portuguesa da sua geração.
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