Crime e Castigo - Fiódor Dostoievski

"Se ao menos o destino lhe enviasse o arrependimento - um arrependimento pungente, de partir o coração, de tirar o sono, um arrependimento cujos tornozelos fazem sonhar com a forca e o afogamento! Oh, alegrar-se-ia com isso! Porque os tormentos e as lágrimas também são vida. Mas ele não se arrependia do seu crime."
'Crime e Castigo', Fiódor Dostoievski

É das obras mais geniais que alguma vez leremos. Apaixona-nos e enoja-nos, entra em nós com uma força brutal e deixa-nos sem pé. Faz-nos cometer o crime e sofrer o castigo, na pele de um Raskólnikov que se culpa pelo seu medo, mas que não se arrepende do que fez, nunca. ‘Crime e Castigo’ encerra uma história narrativamente simples, mas eticamente complexa, que eleva Dostoievski ao patamar de romancista único na história mundial - e na nossa humilde biblioteca caseira.

Raskólnikov desistiu do curso de Direito e só pensa no dinheiro que pode roubar à velha usurária se a matar silenciosa e discretamente no seu apartamento. Pobre, de uma família modesta, Raskólnikov quer sentir-se maior do que é e ultrapassar, como ser extraordinário que se considera, o homicídio sem qualquer mazela. Mas o impulso delirante que o levou ao crime leva-o também, após o mesmo, a adoecer e sofrer com receio de ser apanhado, com a vontade de se entregar, ou apenas com o desejo de se salvar da situação em que se colocou. Sem arrependimentos, apenas para tranquilizar a sua consciência sobre a capacidade de superar este sofrimento.

Paralelamente conhece Sónia, prostituta e filha de um funcionário público a quem Raskólnikov emprestara algum dinheiro. Porque não havia no seu interior a maldade de um vilão, apenas um coração destroçado pela sua situação social e condenado a procurar uma vida melhor, mesmo que isso implicasse destruir a anterior. A paixão por Sónia e o amor pela sua família, a mãe e a irmã, bem como pelo amigo Razumíkhin, transformam esta dor individual numa dor colectiva, pela incapacidade de explicarem o que se passa com este ser que lhes é tão querido, e que é responsável por um terrível homicídio que desconhecem.

Estas são apenas algumas das camadas desta narrativa e desta personagem deplorável, que matou e não se arrepende, mas que de alguma forma consegue ganhar a nossa simpatia através do medo que sente. Colocamo-nos, sem querer, no mesmo corpo, no mesmo patamar que ele, ao sabermos o mesmo que ele sabe, e tornamo-nos cúmplices da sua acção horrenda e da sua tentativa de salvação por sofrimento.

E ao mesmo tempo odiamo-lo pelo que fez e pela forma como esconde o crime, como quase não pensa no facto de as ter matado; como, afinal, parece ter matado sem a razão económica que supúnhamos inicialmente. Pela sua incoerência na forma como sofre por quase ser descoberto, mas que em simultâneo parece querer que descubram tudo. Não o entendemos, porque na verdade não conseguimos colocar-nos na pele dele, e isso intriga-nos mais do que na leitura habitual de uma história de ficção.

E depois há esta justificação tão íntima e pensada para o seu crime, de querer fazer parte do grupo dos seres extraordinários, a quem todos os crimes são desculpados e que podem infringir todas as regras da sociedade. Entendemo-la, identificamo-nos com o seu desejo sempre incumprido de ser mais rico, de ser melhor, de ser alguém, mas apenas vemos de fora a sua incapacidade de o ser através de um crime horrendo como o que comete.

É difícil explicar por palavras o que ‘Crime e Castigo’ nos faz, porque não é uma leitura que possa passar pelas nossas vidas deixando-as indiferentes. A escrita de Dostoievski, ainda que aparentemente simples, encerra na construção narrativa um sentimento tal de identificação e de culpa partilhada que o torna inesquecível a todos os níveis. Raskólnikov é das personagens mais intrigantes que já conheci na literatura, e intrigante porque é verosímil na sua inverosimilhança. Não há nada a apontar (quem somos nós, comuns mortais, para fazê-lo) a esta obra literária genial que entrou directamente para o meu top de livros de sempre e para sempre.

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