O Desconhecido do Norte Expresso - Patricia Highsmith

"Foi buscá-lo à secretária para o ver. A dureza do aço entre os seus dedos acalmou-o. Era a única prova de que ainda não se separara. E de nada mais precisavam, se lhe deitassem a mão. Sabia muito bem por que guardava o revólver: por ser seu. Fazia parte de si mesmo, era a terceira mão que cometera o crime. Era ele próprio, quando o comprara aos quinze anos; ele próprio, durante o tempo de casado com Miriam; guardara-o no quarto de ambos em Chicago; habituara-se a vê-lo, de vez em quando, nos momentos mais felizes e mais íntimos da sua vida. Era o melhor dele mesmo, com a sua lógica mecânica, absoluta. Como ele, sabia-o agora, tinha poder para matar."
'O Desconhecido do Norte Expresso', Patricia Highsmith

Hitchcock tinha de facto olho para as boas histórias. E por muito que este ‘O Desconhecido do Norte Expresso’ não seja o espelho do seu ‘Strangers on a Train’, é uma história igualmente, se não mais interessante até, do que o filme que me deu a conhecer o livro. A escrita incisiva de Patricia Highsmith é perfeita para descortinar este encontro entre dois homens que transformou as vidas de ambos.

São dois estranhos que se conhecem num comboio, com vidas totalmente diferentes, mas que por algum motivo começam a conversar. Guy é sério, trabalhador, e não liga inicialmente às ideias de Bruno. Mas este é desde logo a personagem disruptiva, com um carácter duvidoso, a quem surge a ideia da “troca de homicídios”. Bruno quer que Guy mate o seu pai, prometendo-lhe em troca matar a sua futura ex-mulher, Miriam, deixando-lhe assim o caminho livre para casar com Anne, o novo amor da sua vida. E Guy vai-se revelando aos nossos olhos à medida que o vemos rejeitar a ideia e transformar a sua percepção da mesma até à sua aceitação. Ninguém é obrigado a matar, ou é?

Guy é sem dúvida a personagem mais fascinante deste policial com toques filosóficos que Patricia Highsmith nos traz. Fascinante porque é complexo, aparentemente um homem de ideias banais e sem qualquer maldade dentro de si. O que vamos percebendo à medida que o livro avança é que Bruno e a sua personalidade quase demente apenas despoletaram o ser escondido dentro de Guy, que sentia o mesmo impulso e a mesma capacidade de matar.

‘O Desconhecido do Norte Expresso’ é inesperado, numa escrita misteriosa e subtil que nos vai dando a conhecer o interior de cada personagem. A questão do homem inocente ou culpado, bastante diferente do “falso culpado” muito abordado nos filmes de Hitchcock, é aqui central: não podemos colocar nenhum deles apenas numa destas categorias. Como os seres humanos "reais", as personagens de ficção verosímeis e complexas têm os seus problemas e as suas ambiguidades, e é um pouco isso que Highsmith explora neste policial.

Um crime perfeito que dá origem a uma descoberta interior, por assim dizer. Um crime que, ainda que aparentemente único e espectacular, por não haver nada a uni-los, nenhuma proximidade geográfica ou familiar, não é assim tão perfeito como imaginavam e pode levá-los a um final inesperado. É sem dúvida um livro a ler, não com ligeireza, mas com esta ideia de que há mais dentro de qualquer um de nós do que aquilo que mostramos à superfície.

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