O Arranca-Corações - Boris Vian
"No seu quarto, também Jaquemort acabava, por seu lado, de apagar a luz. Acalmou-se o ranger distante do colchão da ama que se deitava de barriga cheia. Ficou uns momentos deitado de costas, imóvel. Todas as coisas desses últimos dias dançavam, vertiginosas, à sua frente, e o coração pulsava-lhe impetuosamente. Até que, a pouco e pouco, lá sossegou e então, fechando as pálpebras fatigadas sobre as retinas laceradas pelas ásperas correias de insólitas visões, resvalou para o inconsciente."
'O Arranca-Corações', Boris Vian
Boris Vian é mestre na criação de universos e histórias surreais, onde as personagens são mais estranhas do que perceptíveis e escondem muitos significados ocultos. É o caso deste 'O Arranca-Corações', numa aldeia macabra onde, para mal de todos os pecados, tudo é o que parece - e na ordem habitual das coisas não o deveria ser, de todo.
Jacquemort, psiquiatra de profissão, chega a esta aldeia aparente normal para ajudar a dar à luz três crianças gémeas, três rapazes: Noël, Joël e Citroën. A mãe, Clementine, aceitou mal a gravidez e deixa de conseguir suportar o marido, Angel, assim que estes nascem. Já Jacquemort continua a viver lá em casa, fazendo visitas regulares à aldeia, contactando com as suas peculiaridades, e ao mesmo tempo procurando realizar o seu desejo nesta visita: psicanalizar as pessoas e assimilar os seus sentimentos para tentar preencher o vazio que sente dentro de si.
Este vazio é óbvio no seu temperamento ameno, na forma como procura acalmar Angel e sobretudo psicanalizar tudo e todos, mesmo a empregada Culbllanc, com quem mantém uma breve relação física. Nada o incomoda demasiado, nada o satisfaz demasiado. Apenas as primeiras visitas à aldeia o deixam um pouco abalado ao ver a falta de consideração das pessoas umas pelas outras, o que nas visitas seguintes acaba por já lhe soar habitual. Evita-as, mas passa por todas estas situações sem nada fazer, rendendo-se às evidências e tornando-se também parte delas.
A aldeia é talvez o lugar mais peculiar encontrado numa ficção que, apesar de metafórica, pretende ser bastante crítica e realista, mesmo incisiva, face à sociedade que discrimina e promove a desigualdade: Quem diz que os existencialistas só pensavam no seu lugar no mundo e nas suas dúvidas filosóficas? Nesta aldeia há uma feira dos velhos, um rio vermelho onde um homem - que todos chamam "A Glóira" - pesca com a boca todo o lixo que é atirado ao rio (e por lixo entenda-se tudo o que se quer apagar), uma igreja onde a missa se transforma num verdadeiro ringue de boxe e um série de fábricas onde jovens aprendizes são maltratados e trabalham, se for preciso, até à morte.
Jacquemort, psiquiatra de profissão, chega a esta aldeia aparente normal para ajudar a dar à luz três crianças gémeas, três rapazes: Noël, Joël e Citroën. A mãe, Clementine, aceitou mal a gravidez e deixa de conseguir suportar o marido, Angel, assim que estes nascem. Já Jacquemort continua a viver lá em casa, fazendo visitas regulares à aldeia, contactando com as suas peculiaridades, e ao mesmo tempo procurando realizar o seu desejo nesta visita: psicanalizar as pessoas e assimilar os seus sentimentos para tentar preencher o vazio que sente dentro de si.
Este vazio é óbvio no seu temperamento ameno, na forma como procura acalmar Angel e sobretudo psicanalizar tudo e todos, mesmo a empregada Culbllanc, com quem mantém uma breve relação física. Nada o incomoda demasiado, nada o satisfaz demasiado. Apenas as primeiras visitas à aldeia o deixam um pouco abalado ao ver a falta de consideração das pessoas umas pelas outras, o que nas visitas seguintes acaba por já lhe soar habitual. Evita-as, mas passa por todas estas situações sem nada fazer, rendendo-se às evidências e tornando-se também parte delas.
A aldeia é talvez o lugar mais peculiar encontrado numa ficção que, apesar de metafórica, pretende ser bastante crítica e realista, mesmo incisiva, face à sociedade que discrimina e promove a desigualdade: Quem diz que os existencialistas só pensavam no seu lugar no mundo e nas suas dúvidas filosóficas? Nesta aldeia há uma feira dos velhos, um rio vermelho onde um homem - que todos chamam "A Glóira" - pesca com a boca todo o lixo que é atirado ao rio (e por lixo entenda-se tudo o que se quer apagar), uma igreja onde a missa se transforma num verdadeiro ringue de boxe e um série de fábricas onde jovens aprendizes são maltratados e trabalham, se for preciso, até à morte.
Mas Jacquemort nem precisa de sair de casa para experienciar toda esta falta de humanidade e de consciência perante o outro ou, melhor dizendo, esta pouco aparente mas efectiva ausência de coração em tudo o que se faz. Todo este absurdo, portanto. Clementine diz amar os seus três filhos com todo o seu coração, protegendo-os de todas as formas possíveis e imaginárias dos perigos da vida. Só pensa em tudo o que lhes pode acontecer se "isto" e se "aquilo", acabando por não os deixar viver, de todo, uma vida normal. E acabando por transformar este possível amor num ódio premente contra a inevitabilidade da vida.
'O Arranca-Corações' é uma obra negra, verdadeiramente crítica e intensa se a soubermos olhar desta perspectiva subjectiva e interior, mais do que atendendo à sua forma e lendo as suas palavras à superfície. É preciso entrar no universo absurdo de Boris Vian e encontrar, nesta aldeia onde tudo é caótico, um sentido para esta busca pelo amor que nunca se concretiza senão afastando-o ainda mais das suas vidas. Um livro sobre a fragilidade humana, perturbante e sempre actual, que ainda que possa não nos dizer muito acaba por permanecer, pelo menos em parte, na nossa memória literária.
Comentários
Enviar um comentário