Vergílio Ferreira: o centenário de um escritor inconformado


Em 2016 passam 100 anos desde o nascimento e 20 sobre a morte de um homem que não gerou consensos, mas que deixou o seu lugar bem assente na história da literatura portuguesa do século XX. 28 de Janeiro, o dia em que nasceu, na aldeia de Melo, em Gouveia, marcou o início de um ano inteiro recheado de celebrações, reedições, conferências e muitas outras homenagens a Vergílio Ferreira.

"Alegrias? Dificuldades? A maior alegria de que me lembro, é a de estar vivo; e a maior dificuldade também." em 'Um Escritor Apresenta-se’ (1981)

A escrita apresenta o autor


‘Para Sempre’ (1983), título de uma das suas obras de ficção, é um dos que vêm à memória quando comemoramos 100 anos sobre o dia que trouxe Vergílio Ferreira ao nosso mundo - a imortalidade da sua escrita e do seu humanismo são pormenores que o tempo e a memória não conseguem apagar.

Nas 50 obras, entre romances de ficção, ensaios e diários, que Vergílio Ferreira nos legou, dificilmente reconheceríamos o rapaz que escreveu as primeiras no homem maduro que nos ofereceu as últimas. A sua capacidade de aprendizagem, de auto-crítica, de evolução constante, mesmo que isso implicasse contradizer o que tinha escrito anteriormente, são dos traços mais notáveis na sua obra. E são também paradigmáticos da sua complexidade, pois lê-lo num novo livro é sempre diferente de o ler no anterior.

Há, por isso, sempre algo novo a lembrar sobre o autor que, apesar de nos ter deixado há 20 anos, a 1 de Março de 1996, nos continua a apaixonar pela sua capacidade de absorver todo o tipo de pensamentos, crenças e descrenças, não se deixando ficar por primeiras impressões e opiniões supérfluas. Existe uma reflexão permanente na sua vida, que se reflecte também na sua escrita, sempre determinada pelo estado de espírito, pela necessidade de catarse, ou até mesmo pelo turbilhão de dúvidas sobre a vida que lhe passavam pela alma.

O homem que, de forma quase catártica, nos ofereceu em ‘Vagão J’ (1944) e em ‘Manhã Submersa’ (1954) um relato da sua infância pobre e dos seus anos no Seminário do Fundão, é radicalmente diferente do autor dos romances que se seguiram, ao transformar a sua escrita inicialmente neo-realista num questionamento existencialista do mundo. É o mesmo homem a narrá-las, existe até um paralelismo nas mulheres que descreve nos vários romances, escreve histórias semelhantes de descoberta, de fuga à caverna da alegoria de Platão; mas a forma como as relata nunca é exactamente a mesma, e é isso que faz com que, a cada obra, o leiamos sempre pela primeira vez.

Vergílio Ferreira nunca se assumiu como um resistente ao regime de Salazar nem como um anti-católico fervoroso, pelo contrário: sempre tentou chegar a um consenso para a publicação dos seus romances, na ditadura, cedendo aos cortes da censura; e quanto ao catolicismo não se assumia totalmente como descrente em Deus, apenas como um saudável questionador da visão fechada e dogmática que a Igreja dela fazia.


Queria ser lido, mais que tudo o resto - nem a bem sucedida aparição no filme de Lauro António baseado na sua ‘Manhã Submersa’, como reitor do Seminário, lhe agradou por retirar protagonismo à arte em que gostaria de ser mais reconhecido: a escrita. E apesar de a sua visão antitética a estes dois regimes estar bastante presente na sua obra, de forma indirecta e, por vezes, subtil, não tinha como objectivo criticá-los gratuita e exclusivamente. Existia sempre uma motivação pessoal, uma reflexão sobre o contexto em que vivia e uma tentativa de encontrar a verdade no meio das verdades que lhe eram oferecidas, tanto nos romances como nos diários em que censura de forma mais acesa as liberdades que não lhe são conferidas.

Há em Vergílio Ferreira uma forma muito própria de reflectir, virada para o futuro e para a ‘Mudança’ - (1949), obra que marca, inclusivamente, o início da sua investida existencialista na ficção -, para a atribuição de sentido às coisas. Não é, de todo, virada para o passado, ainda que o possa retomar como exemplo. E, por este motivo, não é saudosista, tratando-se quase de um sentimento pouco português, este do homem que dizia que “a minha pátria é a imaginação”.

É a voz e o pensamento de um homem que escreve por motivos egoístas, para poder olhar para a vida futura com olhos de ver, enfrentando o passado; mas também de um homem consciente da sociedade em que vive, de tudo o que constrange o mundo dos homens. Encerra em si mesmo um sentimento quase pessoano de quem nunca está bem onde está, que não tem paz no espírito, que quer sempre mais, que não aceita o que vê e o que lhe é dado, que busca aquela coisa linda e desconhecida que parece faltar. E que faltará sempre, para dar sentido ao questionamento, à continuidade; em suma, à vida.

Na escrita diarística, é a velha impossibilidade comunicacional de a palavra traduzir directa e fielmente o que a alma deseja expressar que o preocupa: "Minha Gina: vou hoje começar um diário para ti. (...) Tu sabes que um diário é sempre falso. Nós somos quase sempre falsos até mesmo quando pensamos, porque o pensar é já um desnudar-se uma pessoa perante si mesma.” - em ’Diário Inédito’ (2010). Não quer, por isso, reflectir muito nestes seus escritos, mas acaba por os alterar e tornar mais “literários”, anos depois da escrita, para que um dia pusessem ver a luz do dia. E assim o fizeram.

Apresentado pela sua obra, Vergílio Ferreira pode não ter sido consensual política, filosófica e até literariamente, com as suas mudanças de posição, a sua absorção de influências e a relação próxima que manteve sempre com a palavra escrita: delicada, pessoal e intransmissível. É inquestionável, no entanto, a sua influência sobre a visão do Portugal do século XX e o lugar do homem no mundo. Ainda que possa não ter deixado herdeiros deste seu existencialismo romanceado e do seu humanismo irrepreensível, deixou-os em herança à história do seu país.

100 anos de Vergílio Ferreira em celebrações


Das comemorações do centenário de Vergílio Ferreira fazem parte, antes de mais, reedições de obras há muito esgotadas do autor: ‘O Caminho Fica Longe’ (1943), a sua primeira obra, escrita em 1939, apreendida pela censura e agora publicada na versão revista pelo autor para publicação; e ‘Rápida, a Sombra’ (1964). A 15 de Janeiro foi também lançada nas livrarias, a par destes dois romances, uma reedição da Quetzal de ‘Aparição’ (1959), a obra do autor que o Plano Nacional de Leitura mais deu a conhecer aos portugueses em idade jovem, e ainda um livro que reúne ‘100 Frases de Vergílio Ferreira’.

Para os meses seguintes, aguarda-se a reedição de ‘A Curva de Uma Vida’ (1938) e do romance ‘Promessa’ (1947), ambas obras póstumas lançadas em 2011. ‘Cântico Final’ (1959) será outra das obras esgotadas a ver a luz do dia esta Primavera. No final do ano, será a vez de ‘Onde Tudo Foi Morrendo’ (1944) ter uma nova edição pela Quetzal.


Para lá da revisitação ao seu espólio, as celebrações incluem uma série de colóquios e conferências na sua terra Natal, Gouveia, promovidas pelo município, que criou também um site próprio para lembrar o autor e englobar todas as iniciativas do centenário. Os CTT lançaram ainda a edição especial de um postal de homenagem a Vergílio Ferreira.

Na Internet, a RTP criou uma área específica do seu site de notícias para recordar o autor em entrevistas na rádio, em reportagens sobre o local onde nasceu e onde foi sepultado - virado para a Serra da Estrela, como pretendia. Já a Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas revelou documentos inéditos presentes nos arquivos da Torre do Tombo relativos à censura das obras de Vergílio Ferreira: ‘Vagão J’, ‘Manhã Submersa’ e ‘A Face Sangrenta’.

Será assim um ano inesquecível e imperdível para todos os admiradores da vida e obra de Vergílio Ferreira - o homem, o escritor, o professor e o eterno aprendiz da vida.

"A palavra é um espartilho das ideias - diz-se. É pior. Não só uma ideia fica deformada na palavra, como isolada irremediavelmente de quantas ideias lhe pertencem.” em ‘Diário Inédito’ (2010)

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