O Pintor debaixo do Lava-Loiças - Afonso Cruz
"Quando Františka deixava um pedaço de comida, Sors trincava-o onde tinham estado os lábios de Františka. Mastigava beijos, dizia Sors. Engoliu inúmeros ao longo da vida. Bebia pelo mesmo copo que ela pousava. Beijava o mesmo cão, as mesmas árvores. Perseguia as pegadas dos lábios de Františka, as marcas das suas dentadas. Adorar (ad oris) significa, literalmente, levar à boca. Foi isso que Sors fez todos os dias da sua juventude."
'O Pintor debaixo do Lava-Loiças', Afonso Cruz
Uma pequena obra prima de Afonso Cruz para todas as ideias que é impossível não conquistar qualquer coração mais mole. 'O Pintor debaixo do Lava-Loiças' é um pintor debaixo de um lava-loiças, mas é tão mais que isso - é uma história ficcionada de descoberta, de solidão, de vingança e de redenção a partir de uma personagem real que um dia apareceu nas vidas dos avós do autor e que este nos escolheu dar a conhecer na sua escrita incrível e única.
Josef Sors nasceu no império Austro-Húngaro, filho de um mordomo e de uma engomadeira. Viveu a sua infância na casa onde os pais trabalhavam, do Coronel Möller, sendo até educado junto do filho deste, Wilhelm. Apaixonado por Františka, é ela que o faz começar a fazer desenhos de olhos, no Livro Infinito, e começar a duvidar da sua teoria do "problema da dispersão e a lei de Andronikos relativa à árvore de Dioscórides". Mas quando Sors é destacado para lutar na Primeira Guerra Mundial e regressa a casa após uns anos, tudo à sua volta mudou e ele abandona o local para onde regressou, que sente não ser o mesmo que deixara, rumo aos Estados Unidos. É ao regressar à Europa que tem de se exilar debaixo do lava-loiças dos avós de Afonso Cruz e dá origem a esta épica história.
Quando se apaixona por Františka e é feliz na sua teoria de que devemos viver a vida numa linha recta e como um verdadeiro artista, pintando desenhos incompletos porque nada na vida deve estar completo ou deixa de ter interesse, Sors desenha no seu Livro dos Olhos Acesos. Muitos, diversos olhos abertos de todas as pessoas que conhece. Desenha-as a todas, mentalmente, pois é a única forma de as ver. Mas quando a sua vida muda e a solidão preenche os seus dias, é no Livro dos Olhos Apagados que pega para desenhar. E nele desenha todos os possíveis e imaginários olhos fechados que encontra no seu dia-a-dia.
Sors cresce, de uma criança inocente e apaixonada para um jovem amargurado com as vicissitudes da vida, e quando a vingança toma conta de si não vê outra forma de sobreviver que não o afaste de todos os que estão no seu caminho, como a mãe, Františka ou Wilhelm. Mas nunca se consegue fugir totalmente do passado. E Afonso Cruz leva-nos pelas suas memórias, pelas vivências do presente que não o preenchem, que estão sempre aquém dos sonhos e do que esperava alcançar enquanto pintor e artista. Perde-se esta sua personalidade pelo caminho, ainda que Sors continue a existir fisicamente na sua solidão.
O epílogo do autor, explicativo do que é real e ficcionado sobre Sors, que existiu mesmo nas memórias partilhadas pelos seus avós e nos quadros que deixou ficar em Portugal ao tentar regressar aos Estados Unidos, é mágico na sua simplicidade e ao mesmo tempo deixa-nos com uma vontade enorme de conhecer o protagonista que apenas podemos conhecer melhor através da sua pintura. E existe um certo paralelismo com Afonso Cruz, escritor e ilustrador, cujos desenhos nos prendem do início ao fim, tanto como a sua escrita ímpar.
Um pequeno livro de Afonso Cruz que, para já, é das melhores criações suas que já li, que me encheu as medidas e me tornou um pouco mais rica, mesmo sendo uma obra tão pequenina e rápida de ler - fui buscá-la à Biblioteca e li-a em apenas alguns dias. Faz todo o sentido estar no Plano Nacional de Leitura e sou capaz de a reler muitas vezes só para me recordar desta sensação que é lê-la infinitamente.
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