A Boneca de Kokoschka - Afonso Cruz

"E há memórias, estilhaçadas, espetadas contra as paredes, sentimentos que são mais difíceis de interpretar do que braços. Um braço esquerdo é um braço esquerdo, mas o sentimento é esquivo. O sorriso de um filho encaixa em que articulação?, perguntará Deus a refazer o Homem para a ressurreição. Há memórias que não cabem no corpo. O sorriso de um filho é uma peça de puzzle maior do que o puzzle a que pertence. E Dresden era peças, não só de cimento e ossos mas de almas, uma confusão de matéria e espírito, uma sopa muito pouco cartesiana."
"A Boneca de Kokoschka", Afonso Cruz

Uma escultura real que podia ter mudado a vida de muitas pessoas. É esta a premissa da obra que Afonso Cruz magistralmente escreve em 'A Boneca de Kokoshka', uma história de passados e presentes, coincidências e gaiolas que estão dentro das pessoas e não fora, a impedi-las de serem livres.

O pintor Oskar Kokoshka, perdidamente apaixonado pela sua amada Alma Mahler, ficou destroçado com o fim da relação e mandou construir uma boneca de tamanho real que a imitava em todos os pormenores. E isto é real! Segundo Afonso Cruz, quando este se fartou da boneca, esta foi parar ao lixo e tornou-se fundamental para o destino de várias pessoas que sobreviveram às bombas da II Guerra Mundial que atingiram Dresden, entre elas o dono de uma loja de pássaros, Bonifaz Vogel, e Isaac Dresner, uma criança que vê todos à sua volta desaparecerem.

"Às vezes, o meu pai pegava numa folha e desenhava uns riscos que, segundo ele, eram as rugas da testa do meu avô. Nessa altura tinha pena do meu pai e chegava a rezar para que Adonai lhe desse o dom do desenho. Talvez um dia con- seguisse desenhar um rosto inteiro. Uma vez perguntei-lhe porque é que ele repetia tantas vezes as frases do meu avô e ele respondeu assim:
– Repetir o que o teu avô dizia é como olhar para uma foto- grafia dele.
Afinal, o meu pai não precisava de saber desenhar."

'A Boneca de Kokoshka' conta os encontros e desencontros destas personagens, em histórias de várias épocas que a certo ponto se cruzam, como coincidências inevitáveis e escritas nos seus destinos aparentemente distintos. Qualquer tentativa de explicar estas histórias paralelas sai ao lado da beleza  e da simplicidade com que o autor as descreve, com referências muito próprias e que acrescentam algo à obra que lemos - como por exemplo a 'Tears' de Django Reinhardt, muito importante para duas personagens deste pequeno tesouro literário.

Nesta 'Boneca' quase russa, que vamos descobrindo em camadas até chegar às verdades mais cruas, há um livro dentro do livro, há memórias contadas e escritas, e há uma característica muito própria de Afonso Cruz que me fascina sempre e me deixa sem palavras: os títulos inesquecíveis e os desenhos que ajudam sempre a visualizar melhor o seu universo criativo.

Uma história verdadeira que se desdobra numa série de histórias verosímeis. Um conjunto de personagens que deambulam pelas ruas e pela vida em busca de amor, de paixão, de uma vida diferente. E mais uma obra de Afonso Cruz que me toca de uma maneira especial no coração.

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