Hotel Memória - João Tordo

"Tudo era memória. O presente era a memória de si próprio, e era possível existir apenas se pudéssemos conservar as recordações de momentos que nunca se repetiriam. E, no entanto, pararoxalmente, a memória era aquilo que de mais falível um homem possuía: nomes esquecidos ou trocados, caras que se confundiam com outras, lugares onde julgávamos já ter estado, um lápis desaparecido para sempre, os constantes deslizes que tornavam a realidade o lugar de um romance, de uma história, encantadora pela sua fiabilidade, e não pela sua certeza."
'Hotel Memória', João Tordo

A memória é um tema muito explorado nas obras e pelas personagens de João Tordo, como algo que nunca fica para trás. 'Hotel Memória' não é excepção: o passado e a culpa são fantasmas que perseguem o protagonista até ao fim. Duas histórias entrelaçam-se numa busca de redenção que transforma a vida deste protagonista anónimo e que o leva a conhecer mundos do submundo que nunca pensou vir a conhecer.

Bartleby, nome pelo qual passa a ser conhecido, é um simples estudante de 27 anos que vai para Nova Iorque estudar Literatura Inglesa. Na faculdade, conhece um amigo, Manuel, e apaixona-se perdidamente por Kim, uma rapariga que parece diferente de todas as outras. A morte de Kim apanha todos de surpresa, em particular este nosso protagonista, que se sentirá para sempre culpado pelo acidente que a vitimou. Segue-se uma vida de culpa em que procura sobreviver e encontrar um novo propósito para a sua vida, contactando com figuras poderosas e envolvendo-se na história de Daniel da Silva, um fadista português que há muitos anos fora famoso nos Estados Unidos.

'Hotel Memória' tem aquele espírito aventureiro dos policiais (já não é o primeiro de Tordo que me lembra este espírito, veja-se 'O Bom Inverno'), entrelaçado por uma intimidade muito própria da escrita na primeira pessoa. Mais do que uma busca por este desconhecido Daniel da Silva, é uma história de descoberta pessoal, de busca por um caminho que pegue na memória e a transforme em experiência, e não que se deixe destruir por ela.

O nome do romance vem do hotel onde Bartleby (chamemos-lhe assim) acaba por ir parar e que parece ter já na sua memória as histórias de criaturas perdidas, como ele próprio, que por ali passaram. O Memory Hotel é, contudo, mais do que um simples lugar de passagem. É onde o protagonista enfrenta os seus maiores medos e é obrigado a enfrentar também o futuro, a procurar encontrar um rumo para a sua vida.

João Tordo cria em 'Hotel Memória' uma história fascinante, sobretudo do ponto de vista das personagens, que lembra 'As Três Vidas' na forma como um acontecimento muda a vida de um homem. É uma das suas primeiras obras e segue por isso esta corrente dramática que já encontrara nos dois romances mencionados, mostrando mais uma vez a sua genialidade na escrita e na exploração dos desejos e medos mais humanos.

Identificamo-nos com Bartleby (as referências literárias não se esgotam em Melville, mas é talvez a mais forte e óbvia) a cada passo que dá, na sua incapacidade de fugir à dor e ao passado, mesmo escrevendo a sua história e procurando assim alguma espécie de redenção - de uma culpa que só ele sente e compreende). Talvez esta nunca chegue, nem mesmo com a descoberta de toda a verdade. Mas vamos com ele até ao fim e mais além, pois fica connosco bem para lá do final da história.

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