A Língua de Fora - Juva Batella
"Enquanto isto, na cela n.º 013, toda a Turma da Língua de Fora e mais o Eufemismo, os Versos Livres e a Língua bocejavam. Dormiram um sono agitado, sonharam todos o mesmo sonho: um lugar inundado de claridade, talvez uma cidade onde só havia felicidade, afinidade, pouca autoridade, nenhuma arbitrariedade, muita dignidade e amabilidade, os corações cheios de bondade, uma vida de igualdade, relações de lealdade, muita disponibilidade para a descoberta da enormidade de cada espiritualidade, da musicalidade de cada sensibilidade, da verdade de cada subjectividade. Não eram sonhos iguais, porque cada um sonhou o seu sonho - mas todos rimavam com liberdade."
'A Língua de Fora', Juva Batella
Quem diria que a Língua Portuguesa daria o mote para um romance inteligente e original sobre as suas origens, os seus principais intervenientes e todas as revoluções que se vão dando na evolução da língua? Juva Batella pega na poesia da língua portuguesa e na sua complexidade para criar uma obra onde 'A Língua de Fora' é sinónimo de liberdade, união e amor - num mundo em que precisamos tanto de reconquistar estes valores.
Na "janela mais alta do andar mais alto da mais alta torre da majestosa mansão" vive a Língua Portuguesa, protegida pelo Purismo e o Preciosismo, desde a morte do seu pai, Latino Vulgar, rei do Reino das Palavras Livres. Mas só quando o Tom Coloquial e a restante Turma da Língua de Fora a convencem a descer da torre é que a princesa descobre que o seu reino, agora Reino das Palavras Contadas, é regido pelo Verbo e os seus ajudantes Verborrágicos, uma ditadura da palavra que precisa de ser reconquistada para o lado do bem. O grupo rebela-se contra o Verbo numa guerra pela liberdade e pelo futuro da língua, onde no meio de tudo isto uma paixão nascerá também.
O que mais me fascina neste 'A Língua de Fora' é a criatividade com que é desenhada a história da Língua Portuguesa e a poesia que Juva Batella imprime em cada frase ou diálogo - acredito mesmo que a sua criatividade dialógica o tornaria uma óptima peça de teatro para todas as idades! As personagens, dentro do universo da língua e da palavra falada, são muito ricas dentro da sua designação: o Tom Coloquial trata todos por "tu", o Eufemismo procura sempre relativizar tudo, o Pleonasmo passa a vida a reforçar as suas ideias, o Mal-Entendido nunca percebe nada do que se está a passar. E no entanto, apesar de todas as suas diferenças, todos lutam pela mesma liberdade.
"E começaram os seis a discutir, menos o Tom Coloquial, que, deixando-se cair na relva, de frente para a Língua, arregalou os olhos e abriu a boca, completamente encantado, absolutamente maravilhoso, integralmente conquistado pelo som daquela voz a rir, e depois a fitá-lo a sorrir. Ele sorriu de volta, e sentiu que não pararia de olhar para ela e para aquele seu corpo por nada daquele mundo ou de outro qualquer. Ele ficaria ali parado, para sempre, a corresponder àquele olhar. Ele faria qualquer coisa que ela lhe pedisse."
Durante toda esta revolução da Turma, que deita a língua de fora à tirania do Verbo, o romance que se desenrola entre a Língua Portuguesa e o Tom Coloquial (dei por mim a pensá-lo e lê-lo como "tóm", mais do que como "tôm"), duas personagens tão diferentes, torna esta experiência narrativa uma busca pelo caminho que os una na língua do futuro - literalmente falando, no equilíbrio necessário entre a formalidade e a informalidade da língua e da sua necessidade de adaptação aos diferentes contextos de utilização das palavras.
É uma viagem pelos aspectos mais conservadores e revolucionários da língua, ao mesmo tempo que é um romance ficcional simples e eficaz sobre príncipes e princesas, sobre heróis, sobre os bons e os maus. Deixamo-nos levar de forma interessada e maravilhada (como diria o Adjectivo) pela história de libertação de um regime repressivo, onde a cada dia os habitantes do reino têm de recolher a sua dose contada de palavras para utilizarem no dia-a-dia e serem assim controlados, censurados e calados pelo rei tirano.
Há nesta simplicidade de conto de fadas uma camada mais profunda e complexa de descoberta da língua, da existência dos idiomas, da coloquialidade da linguagem, que tornam a leitura mais divertida e complexa - e uma excelente adaptação do português brasileiro para o português de Portugal. Fico feliz por ter sido a minha compra de visita à Livraria Lello, no Porto, que por si só já transporta tanta magia e valoriza tanto a língua e a leitura em língua portuguesa.
Com esta fábula romanceada de Juva Batella aprendemos e recordamos melhor esta língua tão complexa e ao mesmo tempo tão fascinante, cuja gramática tantas dores de cabeça (literais e metafóricas) nos dá nos tempos de escola, e sobre a qual temos uma leitura tão mais interessante enquanto adultos e mais experientes na arte da palavra. Sobretudo se gostarmos tanto de a ler e escrever.
Obrigado, Raquel, pelos seus comentários acerca do meu livro.
ResponderEliminarE este abraço,
Juva Batella
Eu é que agradeço a visita e o comentário, Juva Batella. É uma honra :) E obrigada pela excelente leitura!
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