O Teu Rosto Será o Último - João Ricardo Pedro

"E, enquanto o outro se mirava ao espelho, o ilustre médico descobria, naquele homem vindo sabem Deus e o Diabo donde, talvez das margens do Guadiana pela forma de falar, naquele desgraçado que não tinha onde cair morto e que talvez por isso mesmo caíra ali, um inesperado reflexo de si próprio."
'O Teu Rosto Será o Último', João Ricardo Pedro

O melhor de 'O Teu Rosto Será o Último', para mim, é a sinceridade da escrita, a naturalidade com que cada pensamento nos é transmitido através do discurso indirecto livre, da prosa cuidada. Um autor 'desconhecido' que, através do prémio LeYa'11, se dá a conhecer, e muito bem, aos portugueses. E que, sem saber, nos oferece uma nova forma de ver os livros e a literatura :)

É a história do Dr. Augusto Mendes, do seu filho António, do seu neto Duarte, e das suas esposas também: a D. Laura, a Paula, a Luísa 'namorada' do Duarte. É a história do Celestino, mas também do Policarpo, do Índio, do professor de piano, da professora de canto, da mulher de muletas ou do barbeiro Alcino. O fio condutor é a família Mendes, que dá o mote para a descoberta de uma época histórica, de mil histórias diferentes e maravilhosas que, juntas, criam uma aura de mistério e curiosidade no leitor.


"Para a avó de Duarte, aquelas histórias eram de um mundo longínquo, de um mundo ao qual nunca pertencera, de um mundo que tinha dificuldade em perceber. Falarem-lhe de alemães ou de homens com trinta cabeças ia dar ao mesmo. Pisar a Lua era tão irreal como receber a visita dos doze apóstolos num domingo de Páscoa."

São histórias soltas, quase contos isolados que nos vão fazendo rir, quase chorar, outros contanto verdades sobre a vida. Valem por si, assim isolados, mas juntos, constituindo episódios da história da família, compõem um formato muito original de contar histórias e escrever romances - sem nunca revelar demasiado, mais do que o necessário. E são histórias e episódios que ficam: Duarte a andar de bicicleta todo nu, as cartas do Policarpo, o desenho do iceberg do Índio; o dia em que Duarte queima os discos dos compositores clássicos e vamos conhecendo o que mais despreza neles, através de uma narração personalizada, de uma linguagem directa, cheia de asneiras e expressões curiosas e bem construídas.

É fascinante a forma como João Ricardo Pedro nos consegue cativar logo desde o início, com uma escrita cheia de humor, com personagens ricas e uma estrutura muito interessante e inspiradora de nos dar a conhecer todas estas histórias. O fim é tão estranho e incerto como toda a narrativa que acabámos de ler, mas não tem de ser de outra forma. Vai-nos dando elementos dramáticos e construindo as personagens de forma a que nos identifiquemos com elas e as compreendamos melhor, mesmo no final, quando Duarte fica quase sozinho no mundo e, depois de sofrer tanto, não sabemos bem como vai viver a partir daquele momento.

Uma história de pessoas, de conflitos interiores, de segredos, de dramas e interligações estranhas entre as personagens - tão rica, nas partes e no conjunto, que nos faz querer ler mais do novo autor português!

"E, talvez por isso, por uma momentânea falta de disponibilidade, aquele 'O nosso Duarte' ficou suspenso, a reverberar, à espera, pelo menos, de um predicado que lhe desse sentido, enquanto Duarte, o sujeito, também ele suspenso, olhava em redor para ver se estava mais alguém na sala: alguém lhe justificasse aquele 'nosso'."

Comentários