Biografia Involuntária dos Amantes - João Tordo
"Embora eu sentisse que a melancolia de Saldaña Paris era agora a minha, isso não me conferia o direito de remexer no passado a meu bel-prazer; embora eu fosse parcialmente responsável pelo que acontecera, isso não significava que tinha sobre as minhas costas o ónus da demanda da verdade. Pior ainda: se, por algum motivo, eu me convencera de que, escrutinando o que acontecera, poderia remediar o que viria a acontecer, era preciso que o fizesse por ele e nunca por mim."
'Biografia Involuntária dos Amantes', João Tordo
Já o considerava um dos autores mais promissores da literatura portuguesa. Com este romance, sei que é capaz de tudo: João Tordo é daqueles escritores que, por muitos livros bons que tenham, surpreendem sempre e conseguem sempre melhor nos seguintes. Podemos ter as expectativas muito elevadas, que ele consegue superá-las. Consegue ir ainda mais fundo, tocar-nos a alma e mostrar que a literatura pode levar-nos por caminhos que ainda não conhecíamos. E isso é maravilhoso.
'Biografia Involuntária dos Amantes' é a história de Teresa, de Saldaña Paris e do protagonista anónimo, um professor de literatura na Galiza que contacta com as histórias destes dois amantes numa noite escura em que, com este, atropela um javali. A situação despoleta no mexicano a lembrança desta mulher, Teresa, e do manuscrito que esta lhe deixou quando morreu. O professor vai tentar salvar o amigo, que mergulha numa depressão profunda, e, em simultâneo, salvar a sua própria vida, numa viagem de descoberta, de redenção, de busca do equilíbrio da melancolia.
O que temos são histórias entrelaçadas, é uma narrativa fragmentada e, no entanto, tão consistente, na forma como corresponde sempre à perspectiva do narrador presente e à sua descoberta sobre estas duas personagens. Se numa primeira parte estamos ainda a conhecer a sua vida, a forma como travou conhecimento com Saldaña Paris, a situação que levou à leitura do manuscrito de Teresa e a história desta mulher com uma adolescência difícil, a segunda parte é totalmente diferente: nela viajamos até ao Canadá, até Lisboa, até ao passado, para descobrir a história de Teresa, a verdade escondida nas narrativas que lhe chegam de todos os protagonistas - enviesadas pelo tempo, pela forma única como cada um guarda as suas memórias e pelas mentiras voluntárias ou involuntárias que contam.
À medida que vai remexendo no baú do passado, vai percebendo que por vezes se encontram coisas que não queremos; que a verdade é perigosa, que magoa, que não nos dá necessariamente a força necessária para enfrentar o futuro, pelo contrário. Vai escrevendo esta 'biografia involuntária' dos dois amantes, reconstruindo as suas histórias, umas através de outras, procurando um sentido e uma resposta, procurando a redenção (a sua, por se sentir culpado pelo estado do amigo, e a dele, pela ameaça da história de Teresa o ter deixado naquele estado). Mas... e quando, no passado, só se encontram horrores e ódios, esqueletos e fantasmas?
A primeira pessoa faz todo o sentido nesta narração reflexiva. Ele vai até ao fim do mundo para construir esta história, para tentar curar esta doença adulta que é a melancolia - que passou de Saldaña Paris para si mesmo. Por isso, ainda que a narrativa não seja a sua, ele dá por si a cometer os mesmos erros, a ver nela formas de recuperar a sua própria vida. Torna-se também a sua narrativa, a sua necessidade íntima de lutar pelo fim desta dor que também é a sua.
"A melancolia é impossível de combater porque, a partir do momento em que nos aventuramos no mundo, teremos sempre saudades de tudo. De tudo. Do que fizemos e do que não fizemos, de quem se cruzou no nosso caminho e de quem jamais conseguiremos encontrar. Cuidar das plantas no nosso jardim é prolongar a existência a criaturas que hão-de morrer quando nos esquecermos delas; é querer fazer com que o amor dure mais tempo para, quando nos virmos livres desta vida de uma vez por todas, partirmos de coração a transbordar de tudo o que deixamos para trás."
Entendo porque João Tordo disse que este era o seu livro mais verdadeiro, aquele que lhe deu mais gosto escrever. Por muito que tenha adorado 'O Bom Inverno' e a construção inteligente da história, este romance mexeu ainda mais com o meu coração, com as suas personagens ricas, com esta mágoa constante que nos leva a identificar com o protagonista na sua demanda pelo resgate do futuro. Se a história de Teresa é recheada de terrores, de episódios que podiam tornar-se inverosímeis por serem uma amálgama de dores, a forma como o autor constrói a vida desta personagem torna-a credível e a base de toda a obra, o que é sem dúvida uma prova forte da capacidade de tocar o leitor com a sua escrita.
No início, nenhum deles sabia viver. No final, não quer dizer que o saibam. Mas a vida continua - e, num sentido quase queirosiano, a verdade é que temos de enfrentar o que fomos e o que somos e (sobre)viver com isso. Sobreviver é tentar amar as coisas certas em vez das coisas erradas. Não sei se é a maior aprendizagem que fica desta obra prima da literatura portuguesa contemporânea, mas foi o último pensamento que registei. O mais forte foi o facto de ter passado horas a pensar no que estas páginas tinham significado e a tentar decifrar a minha própria vida através delas. As noites em que não conseguia parar de ler para dormir espelham bem o peso bom desta(s) biografia(s). Não há muitos livros que nos façam viajar e reflectir desta maneira. Obrigada, João Tordo. As saudades vêm tão rápido que não sei quanto tempo aguento sem ler os cinco livros que me faltam.
"Não havia qualquer razão para o amor e, no entanto, ele aconteceu-me. Sem que o procurasse, sem que eu fizesse qualquer gesto para o alcançar. Pura e simplesmente, aconteceu. E eu passei a acreditar, durante alguns anos, que a minha vida também era sobrenatural, que eu existia num reino diferente ou que partilhava um lugar que era a antítese deste mundo em que só vemos desilusão e monotonia. Por isso, quando me perguntaste, no programa de rádio, se eu tinha encontrado o amor, a minha vontade foi responder que nunca se encontra o amor porque ele não é passível de ser encontrado. Que não nos acontece quando queremos mas quando estamos distraídos ou adormecidos. Só que isto não é uma coisa que se diga num programa de rádio, ou é?"
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