"Amanhã foi muito bonito": dos livros e da vida

Quando o li pela primeira vez, era uma miúda de 14 anos que nada sabia da vida. E que pouco tinha lido da vida. Não me lembro como aquele livro me veio parar às mãos, é daquelas coisas que acontecem por acaso e que nem sabemos muito bem porque fazemos. Sei que foi comprado completamente ao acaso, porque o autor era desconhecido e apenas se assemelhava, diziam, aos mistérios religiosos que iam sendo tornado famosos um pouco por todo o mundo. Por isso, aqui a Raquel teve curiosidade em pegar nele e ler uma história diferente, mais adulta, mais composta.

E li-a, e deixei-me fascinar por aqueles capítulos quase soltos, que depois se ligavam todos numa intrincada teia de acontecimentos misteriosos. Lembro-me de apontar alguns nomes de personagens e pequenas histórias dentro da história, para tentar ligá-las e fazer algum sentido naquilo que lia. Era uma miúda, ainda estava a aprender a interpretar a leitura. Mas consegui ver o sentido, consegui lê-lo de uma assentada e apaixonar-me pelas personagens. Via-as na minha cabeça, sobretudo ela, loira e corajosa, jornalista e aventureira (gostava de ser como ela), e ele, muito moreno, forte e determinado, como se nada lhe metesse medo.

A vida tem destas coisas estranhas e, três anos depois, foi a vez de, num momento de iluminação inconsciente, ir parar àquela rede de pessoas que a mudou para sempre. Conheci pessoas maravilhosas que ainda hoje fazem parte da minha vida, algumas delas bem próximas. E contactei pela primeira vez com ele – eu, uma miúda de 17 anos, tímida e fã, que não o conseguia tratar por tu e ainda pensava duas vezes nas palavras que usava quando se dirigia a uma pessoa que considerava tão ilustre. Um livro fez-me isso; os que se lhe seguiram, ao longo dos anos, só derrubaram (num sentido positivo) esse pedestal em que o colocara, para o colocar num outro: o da admiração profunda, como escritor e ser humano – como amigo.

Foram novas histórias – da mesma base pela qual me apaixonara –, novas aventuras, novas personagens, mensagens e intenções, que fui lendo e assimilando enquanto me sentia feliz por lhe poder dizer, directamente, como me tinham tocado. Para além das conversas à distância, as entrevistas e os diversos encontros foram cimentando essa amizade e uma cada vez maior admiração pelo seu percurso literário. Consigo finalmente, hoje, tratá-lo por tu e tenho o privilégio de que me conte alguns dos segredos bem guardados sobre os livros e o futuro das suas personagens.

Por tudo isto, a primeira coisa que me veio à cabeça quando soube foi aquele final de livro em que ela toma conhecimento de algo terrível, e aquela frase do último em que ele próprio escreve: "A vida era mesmo uma folha de papel, vulnerável, à mercê de qualquer advento mais ou menos quezilento, que a faria esfumar-se como se nunca tivesse existido”. Tão vulnerável e tão injustamente cruel, desumana até, que nos apetece fugir da realidade para aquele mundo dos livros que é só nosso, que só nós conhecemos.

A literatura é catarse, é espelho da alma do autor. E é também escape. Que ela sirva de refúgio para os dias menos bons e que ajude a encarar as vicissitudes da realidade. Sei que vai ser uma preocupação temporária, sei que a luta vai dar frutos e sei que toda a força que uma pessoa recebe de outras a torna capaz de enfrentar até as coisas mais funestas. Sei que quem escreve coisas tão verdadeiras, tão bonitas, tão sentidas e tão talentosas, que quem tem tanto para dar em cada dia da sua vida, só pode sair vitorioso das batalhas mais difíceis.

Sei que, por muito que ele queira dar descanso às suas personagens, nós leitores não deixamos. E ficamos sempre à espera do próximo. E isso, de certa forma, conforma-me.

"A Sigridur, quando muito pequena, confundia o ontem, o hoje e o amanhã. Dizia: amanhã foi muito bonito. O meu pai achava que era uma forma de ter visões. A Sigridur só o dizia quando se referia a coisas positivas, alegrias e contentamentos que recolhia. Era uma forma de prever que o dia seguinte seria tão bom quanto o anterior. Como se fosse uma capacidade de sonhar."

O Valter Hugo Mãe, para mim, diz tudo nesta citação d’’A Desumanização’. Acredito que o “amanhã”, mesmo que em sentido figurado, vai ser melhor. A fé é tudo a que nos podemos agarrar nestas coisas da vida. E, já que gostas tanto de vilões, vê se conheces bem este e dás cabo dele na tua ficção :)

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