A Amante Holandesa - José Rentes de Carvalho
"Agora, porém, sozinho, pensando e repensando, esses pequenos nadas transformam-se em interrogações, pontas de mistério, deixam entrever vazios que aguçam a minha curiosidade e lhe juntam um sentimento mau. Não quero saber para compreender. Antes é como se, presa dum ciúme doentio, eu procure modo de me substituir ao personagem real e, verdadeira ou falsa, afeiçoar a sua história ao meu sonho."
'A Amante Holandesa', José Rentes de Carvalho
Uma história de vidas sonhadas que se tornam memórias pesadas. José Rentes de Carvalho cativa com a sua escrita simples, mas única, muito portuguesa, desde a primeira página de diálogos e recordações deste 'A Amante Holandesa'. E cativa mais a cada página, como se nos fizesse sonhar também com o paraíso das memórias felizes e as vidas dos outros que parecem sempre melhores que a nossa.
Amadeu, o Gato, regressou à sua aldeia transmontana vindo de Amesterdão, após uma vida de estivador. Retoma a amizade com um amigo de infância, o narrador, a quem confidencia os anos de emigração e em particular uma aventura inesquecível com uma amante holandesa de quem guarda fotografias. Nos passeios que dão resultam muitas conversas sobre o passado do Gato, o que teve uma vida recheada de histórias. E este relato da sua paixão vai ter no narrador e ouvinte um impacto muito grande, ao apoderar-se destas memórias - a história de um torna-se o sonho do outro, que neste momento de reflexões de meia-idade se apercebe da vida falhada que levou.
Entre o real e o imaginado vai a distância de Portugal à Holanda, mas também de Gato a este homem que nos conta a história da sua amizade, dos seus passeios e das suas palavras. A paixão do primeiro torna-se a obsessão do segundo: Clarisse, esta mulher de quem o Gato guarda fotografias, bela, estrangeira, rica e perfeita, representa tudo o que o nosso narrador não teve na sua aborrecida vida com um casamento que nunca respirou metade da paixão que o amigo lhe conta.
As memórias que atormentam o Gato e que com ele são partilhadas tornam-se reflexos das suas próprias assombrações, não se apercebendo ao mesmo tempo que estão a assombrar o presente do Gato ainda que no passado lhe possam ter dado as maiores alegrias. Homens de meia-idade que nunca se completaram como homens no que sonhavam ser em crianças, desesperados com esta incapacidade de ter sido o que queriam ser. São mais parecidos do que parecem à luz de experiências de vida tão distantes.
Esta dicotomia entre o real e o imaginado, entre a memória e o sonho, numa escrita irrepreensível desde o primeiro pequeno capítulo que me cativou de imediato, tornam também esta pequena obra sobre uma amante holandesa que, na realidade, aniquilou os sentimentos de dois homens, um objecto precioso de adoração. A simplicidade com que está descrita a história, a naturalidade dos diálogos, e ao mesmo tempo o seu sentimento trágico e sentido, tão português, levaram-me a colocar este livro na estante em lugar de destaque, para recordar sempre que possível que as grandes obras literárias vêm das mais pequenas coisas. E com esta é impossível não nos identificarmos a cada página que lemos.
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