Mau Tempo no Canal - Vitorino Nemésio
“- Mas não voltas tão cedo… João Garcia garantiu que sim, que voltava. Os olhos de Margarida tinham um lume evasivo, de esperança que serve a sua honra. Eram fundos e azuis, debaixo de arcadas fortes.”
'Mau Tempo no Canal', Vitorino Nemésio
Qual Romeu e Julieta dos Açores, este 'Mau Tempo no Canal' é uma das grandes histórias literárias portuguesas de amores proibidos, de esperanças frustradas e dores dos corações mais apaixonados. Uma obra densa, com uma escrita descritiva e sentimental, que nos cativa pela complexidade das relações sociais que representa.
'Mau Tempo no Canal' tem lugar na primeira metade do século XX e acompanha a história de duas famílias com rivalidades antigas, em particular dos dois jovens mais novos de cada uma delas, que começam a obra completamente apaixonados um pelo outro: Margarida Dulmo e João Garcia. Quando o jovem de origem modesta parte para Lisboa é Margarida que fica para trás, na Horta, junto da sua família rica em falência, apenas voltando a ser feliz com a chegada do tio Roberto Clark e a perspectiva de ir com ele para Inglaterra e abandonar a vida insular.
"O silêncio do Bairro Alto assaltava-o, como um turno de sentinelas que estão para entrar de quarto, acordando-lhe as recordações e as ideias associadas, para que se pusessem alerta a fim de que o mundo não morresse. O mundo, aliás, nunca lhe parecera tão vivo, representado na sua solidão de solteiro pela própria força do silêncio da noite e do esgotamento de um dia gasto à espera daquela mensagem de Margarida, que dois meses enchiam de uma necessidade dolente e tornavam cada vez mais longínqua."
Neste relato da sociedade açoriana da época, da peste que assola as ilhas e dos ressentimentos existentes entre as duas famílias de classes distintas, ao mesmo tempo que Nemésio pinta um quadro geral dos Açores do século XX foca-se também na história particular destes dois jovens e em particular de Margarida. Respira-se em todo o romance uma necessidade de libertação da insularidade, desta visão fechada sobre as condições sociais - e é Margarida quem o vê acima de todos os outros.
Há, ao longo de toda a obra e de todos os encontros e desencontros que Vitorino Nemésio encontra para demonstrar a ilha que cada ser humano tem a prender uma parte de si, um sentimento de opressão, de tempestade (literal e figurativa) neste canal que separa o Faial do Pico e também no coração dos que ainda têm ambição e esperança de fugir às convenções, ao que a sociedade açoriana impõe.
A escrita densa de Nemésio e o seu "sotaque literário" à moda dos Açores podem atrasar um pouco a leitura, mas não deixam de fascinar pelo detalhe e de promover uma identificação com os pensamentos e sentimentos dos protagonistas. A sensibilidade com que cria Margarida e João faz-nos torcer pela sua liberdade e pelo seu amor - mesmo até depois do final do romance.
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