Mataram a Cotovia - Harper Lee

"As cotovias não fazem nada a não ser cantar belas melodias para nós. Não estragam os jardins das pessoas, não fazem ninhos nos espigueiros, só sabem cantar com todo o sentimento para nós. É por isso que é pecado matar uma cotovia."
'Mataram a Cotovia', Harper Lee

Andava há anos para lê-lo e ainda não tinha tido a coragem de me aventurar. Às vezes é preciso coragem para nos deixarmos levar por histórias densas, educativas e especiais como esta. No ano da morte de Harper Lee, não quis deixar de conhecer a Scout e a sua família, os episódios do seu crescimento e as aventuras que fizeram dela a mulher que conta a história na primeira pessoa.

Em Maycomb não se matam cotovias, pois tal seria injusto. Mas quando Atticus, pai de Scout e do seu irmão Jem, é escolhido para defender Tom Robinson, um negro acusado de violar a filha de uma família branca da região, muitos se viram contra ele. Dos longos verões de Scout com o irmão e Dill, o amigo que os acompanha sempre nas incursões de descoberta da casa dos Radleys e do rapaz que nunca ninguém vê, Boo... todos crescem para compreender o papel de Atticus como advogado da justiça e da inocência, mesmo que apenas aos seus olhos de crianças.

Parece que Harper Lee não foi a principal responsável por esta versão única e perfeita da obra, com o seu 'Vai e Põe uma Sentinela' a ser agora lançado como o primeiro e verdadeiro escrito da autora antes da mão do seu editor. Ainda assim, um livro nunca é apenas a obra do seu autor, e ao mesmo tempo parte sempre, inicialmente, da sua capacidade de criar algo novo e relevante - e, claro, de o exprimir. 

Em 'Mataram a Cotovia' há um pouco de tudo: a inocência das crianças perante situações que desconhecem e não compreendem; as dores de crescimento, mais dos adultos do que das crianças, ao não saberem como as explicar e ao terem de lidar com esta aprendizagem; a dor de crescimento, também, da própria sociedade de Maycomb, que apesar de pequenos passos a caminho da evolução, permanece conservadora e rural.

É um retrato fiel e assustadoramente marcante dos anos 60 nesta pequena cidade norte-americana, aos olhos de uma rapariga maria-rapaz, sem papas na língua e inteligente, que personifica toda a inocência e genuinidade das crianças perante tudo o que os adultos complicam, destroem e renegam por não ser a sua própria realidade.

"Este caso, do Tom Robinson, é algo que atinge a própria essência da consciência de um homem... Scout, eu jamais poderia frequentar a Igreja e adorar a Deus se não tentasse ajudar aquele homem."

Por entre todos os Ewells que maltratam os filhos e culpam os negros; todas as tias Alexandras desta vida que acreditam nas noções tradicionais da rapariga de vestido e nos chás caseiros com as amigas; todos os que criticam Atticus por defender Tom... há um advogado e um homem que acredita na igualdade das pessoas, que luta para que se faça justiça independentemente da raça, como deve ser. E que tenta, a todo o custo, proteger os filhos e ao mesmo tempo educá-los da única forma que pode: para serem pessoas melhores, independentemente do que os outros pensem ou digam.

"Ainda não é tempo para nos preocuparmos", diz constantemente. No meio de tanta intempérie social, de tanta distorção na forma de ver os factos, há sempre a voz do pai Atticus a dizer que está tudo bem, que tudo vai ficar bem. Que a pouco e pouco Maycomb está a crescer e a aperceber-se de que não somos assim tão diferentes uns dos outros. Mas muito a pouco e pouco.

Para isso, por vezes, é preciso colocarmos-nos no lugar dos outros. De Tom, incapaz de maltratar seja quem for, mas incapaz, pelo tribunal e pela mentalidade social, de ser decretado inocente; de Boo Radley, incapaz de fazer amigos entre as quatro paredes em que vive, mas com vontade de se mostrar boa pessoa; de Calpurnia, a empregada negra da família Finch, cujo papel na boa educação daquela família os mais conservadores não vão (pelo menos nesta época) compreender facilmente.

São inúmeros os episódios marcantes desta obra, como as investidas à casa dos Radleys, a ida à igreja com a Calpurnia, as visitas a Mrs. Dubose, o longo julgamento de Tom Robinson e sobretudo a cena final do regresso a casa após a peça da escola. Sem spoilers, porque mesmo que quisesse nunca conseguiria contar de forma tão especial e transmitir o que a leitura desta obra transmite. 

No final, o que resta é esta inocência particular que as crianças têm, esta forma simples e perspicaz de verem as coisas sem preconceitos, sem constrangimentos, sem consciência social à mistura. E ao verem a injustiça a tomar conta das suas vidas, ao perceberem que muitas cotovias tiveram e têm de morrer até que possa haver igualdade e fazer-se justiça... choram, não compreendem, não conseguem conceber tamanha maldade, tamanha injustiça. "Quando isso acontece... parece que só as crianças é que choram."

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