Revisitando Eça e Os Maias


"Caiu-me a alma a uma latrina, preciso de um banho por dentro!"
'Os Maias', Eça de Queiroz

126 anos depois da publicação d' 'Os Maias', chega a aguardada adaptação cinematográfica do romance, às mãos de João Botelho. O cinema português vive no estado que se sabe: poucos fundos, pouco mercado, pouco incentivo cultural, pouca preocupação legislativa. Mas o realizador português pegou numa obra adorada por todos e, mediante escolhas bastante arriscadas, trouxe-a para o grande ecrã da melhor forma que conseguiu: com um leque de actores muito bem escolhido, com um argumento totalmente fiel ao romance e com uma preocupação estética despida de tudo o que é acessório, a começar pelos cenários exteriores pintados. 

Isto fez-me recordar a leitura d' 'Os Maias', sorrir ao relembrar algumas falas icónicas e olhar para a realidade aos olhos de um autor bastante crítico que, à luz da época em que viveu, escreveu uma obra intemporal e inesquecível.

Olhar para nós, para o que nos rodeia, com este olhar crítico é sempre um desafio. Não sabemos propriamente o que Eça queria mostrar com cada capítulo pensado e delicado da obra. Sabemos apenas que a Geração de 70 'odiava', de certa forma, o país, olhando para o estrangeiro com adoração, querendo que Portugal se inspirasse no que tornava os outros países grandiosos para se tornar, também, uma nação de que o povo se pudesse orgulhar. Criticavam todos os tradicionalistas, os conservadores, os que estavam ultrapassados: os românticos (em quem se inspiram), a Igreja (não a religião, mas a instituição clerical), os políticos que, apesar de agora se viver numa monarquia liberal, continuavam a não levar o país pelo caminho da mudança e do progresso. Era isso que defendiam: a regeneração do país, o progresso - a educação. Uma boa educação das elites seria uma boa educação do povo e, consequentemente, a indicação do caminho certo para o país.

A crítica ao país atravessa todo o romance, particularmente na 'crónica de costumes' da sociedade do século XIX. Personagens como o Dâmaso - o oportunista, o pobre de dinheiro, mas sobretudo de espírito e de moral - ou o Eusébiozinho mostram talvez o pior que se podia encontrar na sociedade portuguesa. Os Cohen e os Gouvarinho são as elites que não querem evoluir, enquanto Craft é o estrangeiro do progresso, Cruges o pobre que, por ser músico, ascende à categoria de intelectual e 'iluminado', e Alencar o poeta romântico que, apesar de querido por todos, e de defender ideiais democráticos, vive no passado e não dá o passo seguinte para a regeneração. Ega é uma espécie de Eça levado ao extremo da idiotice (no bom sentido!) - o homem das ideias, mas que no fundo não consegue pô-las no papel, acabando sempre por se submeter às circunstâncias da vida.


E Carlos? Ontem numa aula discutia-se que ele seria uma espécie de peão, à volta do qual se desenvolve toda a história da sociedade e a descrição de um país em ruínas. Que Dâmaso seria o espelho do país. Não concordo muito com isso: para mim, Carlos é o verdadeiro espelho do país, ou pelo menos do que Eça via que Portugal se tinha tornado. Nele há desilusão, há fracasso. Carlos é uma espécie de vítima ali no meio, ou vitimiza-se de tal forma que sentimos compaixão pela sua dor. Ele é o homem educado à inglesa pelo avô, que tira Medicina, que vem para Lisboa porque quer ser alguém na vida e quer mudar o país. Sobre ele, por tudo isto, recaem todas as expectativas de modernização. Contudo, Carlos sucumbe, de certa forma, à ociosidade e à futilidade da classe a que pertence, da elite aristocrática: passa a vida em festas, utiliza inclusivamente a profissão como pretexto para conhecer melhor Maria Eduarda, coloca o desejo carnal e a paixão por uma mulher acima da sua obrigação moral de ajudar o país a reerguer-se. Abdica de tudo o que podia ter sido para ser apenas mais um homem, um homem vulgar, mais um Maia que, tal como o pai, fracassou na vida, apesar de ter tido todas as condições para não o fazer.

Por isso, para mim, a personagem de Carlos é muito relevante no romance, mais do que todo o retrato social que se faz à sua volta, através do escândalo e de personagens-tipo que se ridicularizam em tudo o que dizem ou fazem. Lia ontem uma opinião no Público sobre a actualidade d' 'Os Maias' e a sua intemporalidade com a qual concordo plenamente. O que torna o romance actual passados quase 130 anos não é o facto de o país não ter mudado e estar exactamente igual há dois séculos atrás. Houve progresso, muita coisa está diferente do tempo de Eça. O que não mudou, e não muda nunca, é a natureza humana. E essa é a verdadeira característica presente no romance: os defeitos, os dramas. O fracasso de Carlos é a sua paixão por Maria Eduarda, que é apenas uma das metáforas para o fracasso do país. Não é que o amor seja mau e nos tire do caminho da verdade, nem que o desejo seja algo a evitar, mas o facto de que haverão sempre condicionantes para o país chegar onde devia chegar e que esses acabam por o fazer regredir, se tornam obstáculos predominantes, não se conseguindo colocar no caminho certo. O incesto é como uma espécie de karma, de ridículo, uma situação levada ao extremo que não podia terminar de outra forma.

O final do romance é, para mim, a par do humor cáustico de Ega, uma das cenas mais icónicas de sempre. Se por um lado não vale a pena corrermos pelas coisas que realmente importam, as coisas ditas 'maiores', vamos correr pelas coisas fúteis, pelo chegar a horas a um compromisso social? Assim se vê que, depois de toda esta história, é como se aquelas personagens não crescessem com os erros, com tudo o que viveram, e tudo regressasse ao ponto exacto em que começou.


Se por um lado, também, n' 'Os Maias', Eça é sobretudo crítico, e muito pouco esperançoso, encontrei de certa forma essa esperança n' 'A Ilustre Casa de Ramires' - também através de uma forte crítica na personagem principal, face aos seus antepassados (eles, sim) ilustres. É aquela recuperação dos ideias românticos, do que foram face a uma época que desprezava a Idade Média, que a Geração de 70 também procura idolatrar. Por isso não vejo Eça apenas como alguém que detestava o país em que vivia e o criticava por não conseguir ser como os do estrangeiro. Acredito que ele ainda via esperança em Portugal, que apesar de tudo ele se orgulhava de poder ver em toda a miséria moral que o rodeava uma leve possibilidade de mudança.

Não creio que tenha vivido para ver essa mudança, se é que a houve - mas, sejamos sinceros, se não houver sempre uma mudança possível, um progresso maior para se procurar, de que interessa viver? Esta visão pode parecer masoquista, e a verdade é que cada um retirará do romance uma interpretação muito própria, mas a mensagem principal, para mim, é esta: a de que temos sempre de procurar ser melhor do que somos, sobretudo quando o que somos é tão ridículo, de tão mau, que só podemos rir para não chorar.

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