Flores - Afonso Cruz

Estava junto aos escombros do meu pai, com os restos dos nossos sentimentos à deriva. O meu corpo ainda dizia o nome dele muito baixinho, como se fosse sangue a correr nas veias. As lágrimas não caíam, ficavam suspensas numa antecâmara qualquer do coração ou lá de que lugar é esse onde as lágrimas são laboriosamente fabricadas.
‘Flores’, Afonso Cruz 

Viver da memória ou viver sem memória, dois caminhos que parecem levar a um fim pouco auspicioso, dão o mote para esta reflexão sobre a vida, o presente e a necessidade de agir em lugar de passar ao lado da existência. Afonso Cruz maravilha-nos com a sua escrita fluida, reflexiva e intensa num romance florido qb., sem floreados e com um aroma inesquecível à flor da vida. 

No prédio do protagonista vive o Senhor Ulme, um velhote que não se recorda do primeiro beijo nem de ver uma mulher nua. Enquanto tenta ajudá-lo a reconstruir o seu passado, olha à sua volta, da vida com Clarissa e a filha Beatriz, em busca do amor que também já não se recorda de viver. ‘Flores’ é um romance sobre o amor, a amizade e sobretudo uma constante procura de nós mesmos numa era em que nos perdemos a toda a hora no meio de uma vida que passa a correr. 

 Não podiam ser mais diferentes, o protagonista e o Senhor Ulme. O primeiro perde as estribeiras com um chapéu abandonado sobre uma cama, fala com personagens imaginárias no espelho da casa-de-banho e não quer saber do mundo lá fora. Já o Senhor Ulme, por não se lembrar do seu próprio mundo, foca-se no que está para lá dele: nas tragédias do mundo, nas notícias. Tudo o transtorna, menos aquilo que não compreende e que a si mesmo se refere. 

Afonso Cruz revela que este é talvez o seu livro mais pessoal, o que se sente a cada momento mais intenso que nos leva a identificar com esta personagem principal. Porque poucos serão como o Senhor Ulme, extrapolados da sua personalidade pela falta de memória, mas muitos serão como o protagonista anónimo, perdidos nas suas memórias pela falta de tempo para se aperceberem do seu lugar no mundo. 

É bonita a forma como, sem saber bem porquê - pela amizade da Beatriz com o Senhor Urlme, para tentar salvar a sua honra num casamento onde o amor já há muito deixou de existir? -, este homem embarca na viagem de descoberta do Senhor Ulme, descobrindo pelo caminho as opiniões contraditórias em relação ao seu passado, sem o poder comprovar por nem o próprio saber, na realidade, quem tem sido nestes já longos anos de vida. 

É de facto o contraste entre os dois que torna esta história tão interessante, tão fácil de cativar o nosso espírito mais humano. As inquietações do protagonista, já as sentimos e vivemos muitas vezes - errámos, sofremos, tentámos outra vez e fazemo-lo todos os dias. Precisamos de algo que nos retire dessa sucessão de dias sem importância: de nos sentir desafiados, do perfume das flores, da vida e do amor. E é tudo isso que as ‘Flores’ de Afonso Cruz nos dão, de forma tão simples, tão bela e tão crua.

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