Blackpot - Dennis McShade
"Quando olhou para o espelho, os olhos, do outro lado, disseram-lhe coisas estranhas. Por exemplo: pode-se vomitar tudo menos o medo e a solidão."
'Blackpot', Dennis McShade
Li-o de uma assentada, tal como foi escrito: aparentemente sem grande reflexão, de forma muito dialógica, rápida e cinematográfica. Li-o porque a curiosidade era muita: por conhecer este alter-ego de Dinis Machado, por perceber a cinematografia traduzida pela visualidade. E por perceber o fascínio dele por este livro, do tamanho da sua vontade de dele fazer um projecto noutra linguagem cultural.
'Blackpot' não tem propriamente um fio condutor, uma personagem principal, antes um conjunto de indivíduos, cada um com a sua história, mania, doença, ambição e função numa teia gigante de crime organizado. Quando começam a matar-se uns aos outros, a assumir a função e o cargo dos que matam, a morrer, também eles, às mãos de alguém que quer passar para o lado de cima e sair do lado de baixo, é uma vertigem de assassínios até descobrimos quem é o grande vencedor.
Qualquer descrição desta obra é uma simplificação do que ela contém, formalmente - um conjunto delicioso de diálogos, telefonemas, descrições breves mas muito visuais dos acontecimentos. Nada do que possamos dizer foge à superficialização desta história contada por palavras que não são as utilizadas por Dennis McShade.
Mas só o entendemos verdadeiramente depois de relermos passagens - o livro é muito pequeno, podemos quase relê-lo no mesmo momento -, de termos sobre ele, de reflectirmos sobre tudo o que contém. Porque apesar de resultar muito bem apenas pelo que nos oferece à superfície, parece haver tanto mais para descobrir nas suas profundezas: a simbologia dos nomes (um Gulliver, um Victor, por exemplo), as repetições narrativas, as referências filosóficas que o autor insere subtilmente no texto.
"Abriu o livro e leu pela milésima vez a frase que mais odiava: 'Quando todos formos culpados então será a democracia'. Atirou o livro para a lareira acesa e ficou s vê-lo arder durante cinco minutos."
Armador e Gulliver encontram-se para jogar xadrez por diversas vezes em casa do primeiro. Todos os que matam e depois morrem têm uma doença que os vai destruindo e matando por dentro - um vê mal, outro tem algo na perna, outro tem excesso de peso, etc. Todos estão a morrer (e sabem que vão morrer) e no entanto morrem sem estarem à espera que tal acontecesse da formas que acontece, às mãos de quem acontece. E neste jogo de xadrez que é a vida todos eles são apenas peões, às vezes transformando-se em bispos, torres ou cavalos, mas sempre prontos a ser destruídos uns pelos outros.
É interessante como, de forma muito rápida e direta, dialógica, Dennis McShade parece ter despejado no papel uma história que lhe andava a passar na cabeça há algum tempo. Todos estes meandros escondidos do livro não parecem ser acidentais, e são mesmo o que o torna tão interessante para o leitor. E fica a curiosidade por ler mais deste seu pseudónimo inglês!
P.S. - se tudo correr bem, adivinham-se projectos envolvendo este 'Blackpot'. E agora que o li não podia estar mais fascinada e desejando que tais projectos se realizem :)
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