O Fim da Aventura - Graham Greene
"- Sarah, pode ser amanhã. Tinha-me esquecido de uma coisa. No mesmo sitio, à mesma hora. - E ali sentado, com algo por que esperar, pensava de mim para mim: recordo. É a isto que a esperança sabe."
'O Fim da Aventura', Graham Greene
Há livros que se tornam especiais porque nos dizem muito, outros porque são prendas bonitas de pessoas que amamos, e este é um bocadinho a mistura dos dois - e por isso duplamente especial para mim. Uma aventura pelos caminhos do amor, da religião, do ódio, da esperança, da saudade, da dor e da inevitabilidade, se quisermos - que começa com o fim de uma aventura e que, ao longo da aventura que é a leitura, nos mostra, com uma grande sensibilidade, as peculiaridades da existência humana.
Sarah Miles termina subitamente e sem aviso a sua ligação amorosa ao romancista Bendrix, que conheceu durante o Blitz, em Londres. Dois anos depois, louco de ciúme, ele contrata um detective privado para a seguir, procurando descobrir se foi apenas um dos seus amantes e se Sarah estaria novamente a enganar o marido, Henry. Bendrix narra na primeira pessoa, num presente que conta um passado recente e outro mais antigo, o do seu romance com Sarah, sempre com o sentimento, a dor e a amargura que sente.
"- Nunca amei ninguém, ou nada, como te amo a ti. - E era como se, ali, sentada na cadeira, com uma sanduíche meio comida na mão, ela se estivesse entregando tão completamente como o fizera cinco minutos antes sobre o soalho. A maior parte de nós hesita em proferir uma tão decidida afirmação - é que recordamos e prevemos e duvidamos. Ela, porém, não tinha dúvidas. Apenas lhe importava o momento presente. Diz-se da eternidade que é, não uma extensão do tempo, mas uma ausência dele; e por vezes parecia que o abandono de Sarah atingia aquele estranho ponto matemático do infinito, um ponto sem dimensões, inocupante de espaço."
'O Fim da Aventura' vive das personagens principais, a começar pela narração sentida de Bendrix, por todo o seu ódio e ciúme, a uma vida que não é como a que pode escrever nos seus romances e em que Sarah não é só sua, já não é sua, nunca será novamente sua. Mais do que o amor, é este ódio que o consome - e é por ele que precisa de escrever a sua história, desabafar, redimir-se (ou redimi-la) de tudo o que não fez nem pôde fazer.
Já Sarah faz lembrar uma espécie de Madame Bovary, sempre insatisfeita com o que tem, sempre querendo algo mais, quando não a conhecemos bem. Quando nos é dada a conhecer, quando lemos as suas palavras e as confrontamos com o que Bendrix sabia e sabe agora, também, ao lê-las, conseguimos compreender melhor as suas acções, o porquê do seu afastamento - o porquê e a dimensão do seu amor.
E todo o seu questionamento de Deus, da religião, da crença numa entidade superior, é algo que atravessa todo o romance e se torna mesmo intrínseco à sua resolução, na forma como Bendrix renega a possibilidade da existência de Deus, como quer afastar a ideia da sua presença de tudo o que tem a ver com Sarah. Sobretudo por acreditar que o fim trágico desta não pode coexistir com a existência de Deus - e, redundâncias à parte, é nesta dúvida existencial, na base da qual nasce, vive e sobrevive a crença, que Graham Greene apoia a sua obra. Porque também ele diz que o amor não pode simplesmente ser algo biológico e cientificamente explicável - não existe, em tudo, uma dimensão inexplicável que torna as coisas mais interessantes?
Daí que Jorge de Sena o descreva como um "romancista católico", até na forma como introduz o tema, implícita ou explicitamente, nos momentos-chave do romance. Greene apresenta-se como um escritor muito completo e poderoso, com uma escrita fluida, não exageradamente descritiva, mas com uma acção bastante 'contida', por estar carregada (no bom sentido!) de flashbacks e reflexões pessoais de Bendrix. E ao longo das páginas dá-nos a conhecer uma história de intriga e mistério, como se estivéssemos dentro de um policial, e ao mesmo tempo profunda e filosófica, profundamente reflexiva.
O prefácio de Jorge de Sena é um excelente preâmbulo do que leremos a seguir, porque nos dá as pistas necessárias para a leitura, sem a comprometer, como um verdadeiro leitor e sensor da obra. Escreve ele, e com sabedoria:
"Uma aventura é a vida humana. Se tem finalidade ou se tem fim; se a eternidade existe ou não... o leitor de romances lê os romances. O mal está em escrever os prefácios necessários, o que é sempre uma triste maneira de dizer de que partido somos."
E o que fica é este sentimento todo, este amor poderoso, que se sobrepõe a todo o ciúme e o ódio, que no fundo são o que está mais à superfície no que lemos. Algo que me marcou sobremaneira foi a ausência de lágrimas em Bendrix, com toda a amargura que sabemos que sentia, mas ao escrever tudo isto compreendi subitamente o porquê de tudo isso: as lágrimas significariam aceitar o malogrado final desta aventura, e ele foi o único a conhecer e a amar verdadeiramente Sarah. Como poderia sucumbir a isso - e dar essa 'vitória' a Deus... "como se existisses"?
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