Singularidades de uma Rapariga Loura - Eça de Queirós

“Existe, no fundo de cada um de nós, é certo, - tão friamente educados que sejamos, - um resto de mysticismo; e basta ás vezes uma paisagem soturna, o velho mudo de um cemiterio, um ermo ascetico, as emollientes brancuras de um luar, - para que esse fundo mystico, suba, se alargue como um nevoeiro, encha a alma, a sensação e a idéa, e fique assim o mais mathematico, ou o mais critico - tão triste, tão visionario, tão idealista - como um velho monge poeta.”
'Singularidades de uma Rapariga Loura', Eça de Queirós

Eça é daqueles autores que sabe sempre bem ler. Hoje estava a precisar dele, por entre os textos da faculdade, as séries, os filmes e tudo o mais. E, apesar de não ser fã de ler coisas online, não resisti a este pequeno conto, às suas longas descrições e à triste história de Macário.

Macário era jovem e trabalhava para o seu Tio Francisco quando conheceu Luiza, a rapariga loira que observava à varanda. Apaixonou-se imediatamente e quis casar com ela, mas não tinha dinheiro, por isso foi trabalhar para Cabo Verde. Fez tudo por ela, para poder voltar para ela. Mas Luiza não era a mulher que ele conhecia. E é a história do seu triste amor que conta ao narrador numa estalagem minhota.

Eça tem um jeito com as palavras que vai desde as cuidadas descrições à história bem construída, às passagens que enunciam pistas, passando pela beleza com que escreve cada sentimento. Apesar de já conhecer a história, através do filme de Manoel de Oliveira, confesso que nesta versão mais pura e original, talvez pela dimensão poética que advém da própria escrita, gostei mais de acompanhar Macário e a sua desilusão, até mesmo pelos implícitos que o autor ia plantando para nos despertar a atenção. Como que a dizer, também a Macário: "Cuidado, que ela não é o que parece. Não deixes que o amor te torne cego. Não sejas ingénuo e burro, não te percas por uma mulher que não te merece".

“Macario que tinha visto n’aquella visita uma revelação de amor, quasi uma declaração, esteve todo o dia entregue ás impaciencias amargas da paixão. Andava distrahido, abstracto, pueril, não deu attenção á escripturação, jantou callado, sem escutar o tio Francisco que exaltava as almondegas, mal reparou no seu ordenado que lhe foi pago em pintos ás tres horas, e não entendeu bem as recomendações do tio e a preoccupação dos caixeiros sobre o desapparecimento de um pacote de lenços da India”

E ele caiu, e é a sua perdição, e a sua desilusão, que o levam a contar tudo ao novo amigo que conhece na estalagem. No entanto, a sua coragem, no final, em admitir que errou ao deixar-se levar por Luiza, mostra também uma grande força de carácter e até uma posição altiva, ao encobrir o roubo do anel (não há spoilers aqui nem há desculpa para não conhecermos todos esta história!).

Foi perfeito poder lê-lo em voz alta, em casa, quase declamando casa frase, quase liricamente, contando esta história que pode ser a história de qualquer um de nós, mesmo nos dias que correm. A edição, essa, é digital, disponibilizada pela Biblioteca Nacional de Portugal no site, em Singularidades de uma Rapariga Loura. A escrita é 'arcaica', o papel é sujo. Imagino-o pequeno, fino, com o cheiro característico dos livros velhos, enquanto o leio. Surpresa boa!

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