O silêncio também é feito de palavras
'É tão fundo o silêncio' - e as palavras que o quebram merecem ser homenageadas. Quem melhor do que José Saramago para ser homenageado também nesta apologia da escrita, da poesia, da transmissão de um interior para o papel? Pilar del Rio e Miguel Gonçalves Mendes juntaram-se numa interessante conversa acerca da dimensão poética da obra de Saramago e da sua própria vida, revelando algumas curiosidades acerca do homem que nos deixou há mais de dois anos - com tanto ainda para dar à escrita.
Adorava ler poesia, desde clássicos a autores contemporâneos, mas sabia que não era excelente a escrevê-la, por isso não se dedicou a ela. O mesmo com o desenho e a pintura. Não o lamentava, diz Pilar: as coisas são como são, não vale a pena lamentá-las. Diz também Miguel que, para Saramago, não existia o drama romântico da página em branco para um escritor: se não se sentia inspirado, voltava a ela mais tarde. O romantismo não fazia parte de si.
A leitura de ficção científica é outro ponto muito curioso. Para além de toda a pesquisa histórica que fazia para os seus livros, a pesquisa na sua própria imaginação de novas formas de ficção científica é também bastante óbvia. Basta recordar a passarola de 'O Memorial do Convento' ou o cenário apocalíptico de 'O Ensaio Sobre a Cegueira', ou ainda o dia em que ninguém ninguém morreu em 'As Intermitências da Morte'. A sua obra está recheada de pequenas coisas que nos parecem impossíveis mas que se misturam com a realidade com uma suavidade incrível.
E a poesia é exactamente esta dimensão possível da vida, um certo "e se", sempre presente na escrita de Saramago.
Uma história muito engraçada é a que deu origem a 'O Ano da Morte de Ricardo Reis': o lema de Saramago eram os célebres versos do heterónimo de Fernando Pessoa, "Sê todo em cada coisa. Põe quanto és / No mínimo que fazes". Ao descobrir, porém, outro dos seus versos, "Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo", revoltou-se: sábio é, isso sim, aquele que transforma o mundo, que nunca se contenta com o que ele mostra, na onda revolucionária que sempre o caracterizou. Então decidiu 'vingar-se' de Reis e escrever sobre a sua morte, que Pessoa deixara em aberto.
É sempre interessante descobrir um pouco mais acerca dos autores que nos marcam, a origem da suas palavras. O Festival Silêncio mostrou bem a sua dimensão e importância, em particular nesta iniciativa que juntou amantes da leitura e da obra de Saramago na recém-criada Fundação, na Casa dos Bicos. Havia tanto mais a dizer sobre o autor - mas aqui as palavras não chegam.
Juro que este será o ano em que irei dar uma segunda oportunidade ao Memorial. :)
ResponderEliminarAcho muito bem, André! Vale a pena :)
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