Catedral - Raymond Carver

"Desejei que a minha mulher não tivesse adormecido. Tinha a cabeça deitada no encosto do sofá, a boca aberta. Tinha-se voltado ligeiramente e o roupão fugira-lhe das pernas, expondo uma coxa bem torneada. Estiquei o braço para a tapar e foi então que olhei para o cego. Que se lixe! Deixei-lhe o roupão aberto."
'Catedral', Raymond Carver

Raymond Carver escreve sobre as coisas da vida, mas fá-lo de uma forma tão intrigante que nos deixa sem palavras no final de cada conto. 'Catedral' reúne doze dos seus contos e mostra como o autor é exímio na criação de significados, na mestria com que leva o leitor pelas suas histórias. E nós, leitores, não lhes conseguimos ficar indiferentes.

Uma escrita simples que esconde nas suas profundezas um subtexto muito forte e nem sempre fácil de interpretar. Que reflecte, em parte, as vivências do autor, a sua vida indissociável do hábito da bebida, os seus principais questionamentos na vida. Podemos dizer que são histórias do dia-a-dia, com as quais nos identificamos facilmente: a dor da perda, a separação, o ciúme, o amor. Mas dos seus contos que fogem às regras, que querem dizer tão mais que o que encerram nas suas palavras, o que fica é uma sensação desconfortável e uma necessidade de reflectir sobre o que lemos e sobre o significado que Carver queria dar a cada uma das suas criações artísticas.

O conto que dá nome à compilação de contos, 'Catedral', é a história de um homem que recebe em casa um antigo amante e amigo da sua esposa, cego, com quem ambos jantam uma certa noite. Quando ela adormece, é entre eles e as imagens que um não pode ver na televisão, e que o outro tenta descrever por palavras, que se desenrola uma cena de ciúme, aprendizagem e percepção verdadeiramente inesquecível.

Nesta busca pela genuinidade do relato, Carver acaba por criar histórias que nos tocam de forma muito precisa, que nos apaixonam sem sabermos, por vezes, o que nos liga tanto a elas. É sincero na forma como nos descreve os sentimentos e as intenções das personagens, é despretensioso no que pretende transmitir e fazer sentir. Nestes contos há humor, há drama, há paixão, e sobretudo há uma unicidade que não encontramos em todos os autores.

É uma obra a revisitar sempre que possível para nos deixarmos intrigar, a cada vez, pelos significados que tentamos retirar da sua voz muito própria.

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