A Avó e a Neve Russa - João Reis

"Agora, ela só tem de o beber para que as dores desapareçam, e quando isso acontecer, ela conseguirá respirar mais porque não sentirá dores, e encherá os pulmões e o ar irá subir-lhe à cabeça e descer até ao coração, e o coração aumentará e não lhe chegará só ao umbigo mas aos pés que deixarão de estar frios, e já poderá caminhar e voltar para casa: voltaremos a ser uma família, mesmo que a Babushka continue a desenhar pássaros na oncologia e tenha icónicos, flores, castanhas doces e fotografias na mesinha de cabeceira para ajudar na cura."
'A Avó e a Neve Russa', João Reis

Mesmo num dia quente de Verão sentimos o coração gelar com esta história de um menino que só quer levar a avó de volta à neve russa da sua infância e salvar a sua família de um destino inevitável. 'A Avó e a Neve Russa' é o relato de uma criança de uma tragédia a que foge através da sua imaginação e da força de vontade - e uma mistura de dor e esperança que se transformam numa experiência sensível e inesquecível para qualquer leitor.

Um menino de dez anos ajuda a cuidar da Babushka, a sua avó russa e idosa, emigrante no Canadá, que está doente devido aos "ares atómicos" e que por isso vive mergulhada nas memórias do seu passado em Chernobyl e da infância na Rússia. O seu neto mais novo ainda não pode ajudar a "aumentar os rendimentos" como o irmão Andrei, mas não desiste de ajudar a Babushka a recuperar, com a ajuda dos amigos, dos "icónicos" que lhe cola no peito, das fotografias que lhe leva e que podem fazer milagres. E nenhum obstáculo o dissuade de crescer mais depressa e partir numa viagem ao México para trazer um milagroso cacto que vai certamente salvar os pulmões da avó.

Este 'herói' anónimo é o narrador da sua própria história, em toda a sua inocência de criança - e ao mesmo tempo com toda a coragem também ela ingénua e inconsciente, mas pura como a neve que a avó recorda com saudade. A sua perspectiva é, do início ao fim da obra, a de uma criança que não se apercebe da gravidade do estado da avó, que acredita que tudo é possível e que as pessoas são boas, mesmo tendo já ouvido tantas histórias de pessoas e tempos maus em que os nazis massacraram os judeus como o seu amigo Matt, ou em que os comunistas perseguiram inocentes como o seu avô que era contra a revolução russa.

"Uma vez, gostei da Élise na escola, quando tinha uns oito anos e era mais criança do que sou, e já não sei bem ao certo como pensava então, porque o cérebro era mais pequeno e não cabiam lá dentro tantas recordações quanto as que cabem agora. Gostava dela e quis dar-lhe um beijo e andar de mãos dadas no recreio, por isso escrevi num papel e perguntei-lhe se queria ser a minha mulher, para fazer as coisas como um homem sério faz. Para meu azar, a Élise nasceu na época errada e não apreciou um homem decidido como eu, por isso, escreveu no papel: 'Não.' Seguimos a nossa vida, ela para os braços de um outro rapaz. É assim que as coisas são hoje em dia, e não como nos filmes a preto e branco ou com cores muito fortes, daqueles que passam à hora a que ninguém os vê."

Quando há esperança e inocência suficiente para se acreditar num final feliz, será que este é possível? Enquanto à sua volta os adultos sofrem e têm sentimentos, o que a seu ver "causa muitos transtornos", ele vê a vida como uma possibilidade, mais do que como o culminar de uma dor inevitável. E ao sentir esta esperança faz tudo o que está nas suas mãos para ajudar a salvar a sua Babushka, mesmo que não haja nada que ele possa realmente fazer.

Todos os outros - incluindo "o senhor doutor da medicina" que, segundo ele, põe a avó a desenhar pássaros para a curar, num dos muitos equívocos da sua percepção - são adultos que só vêem o que está a sua frente e o tratam como uma criança, quando na verdade ele é um homenzinho, que gosta muito de saber usar a palavra "porém" e tem um vocabulário que orgulha muito a sua professora primária.

Emocionamo-nos constantemente com a sua capacidade de ser "adulto" e crescer depressa, com o seu conhecimento da história do mundo e de histórias reais de dor e solidão, mas sobretudo com a sua inocência na incapacidade de ver o mundo real, dos adultos, feio e doloroso, onde a esperança raramente se vê e se sente. Um mundo que ele não desconhece, mas que parece ignorar inconscientemente, para não se deixar levar por tamanha dor, e para um orfanato onde será separado do irmã se a avó por acaso tiver mesmo de morrer às mãos dos ventos atómicos.

João Reis revisita em 'A Avó e a Neve Russa' a sua vivência do Canadá e a sua voz de criança de dez anos, que vê e ouve muitas coisas face às quais sente muitas outras coisas. Uma história muito portuguesa, escrita com uma enorme sensibilidade, sobre a memória e a esperança, que nos deixa durante algum tempo a pensar no seu significado muito próprio para cada um de nós. E torna-se sem dúvida uma obra prima na nossa estante, a começar pela maravilhosa ilustração da capa e a culminar na mistura de sentimentos de alegria e dor que nos continuará para sempre a fazer sentir.

Comentários

  1. Por tudo o que li senti uma diversidade de emoções confusas mas lindas. Transportou-me ao " Peter Pan" na procura da sua "Terra do Nunca", embora o personagem do seu livro não seja assim, mas lembrei-me, nada a fazer; de repente surgiu- me um outro personagem: o "Zezé" de "Meu pé de laranja lima"; as minhas próprias "verdades" de infância e adolescência embrulhadas nos meus próprios sonhos. Enfim,senti tantas emoções que entrei numa entusiástica vontade de ter e ler todo este (pelos vistos)delicioso livro, e vou fazê-lo. Parabéns João Reis e parabéns também para a Raquel Santos Silva que tão bem nos soube dar a conhecer a beleza do livro "A Avó e a Neve Russa".

    Liliana Josué

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Liliana, muito obrigada pelo simpático comentário. É de facto um livro que também me marcou muito :)

      Eliminar

Enviar um comentário