Uma menina está perdida no seu século à procura do pai - Gonçalo M. Tavares

"... no fundo por vezes estamos vivos apenas para isto - aceitar o que vai acontecendo, e avançar."
'Uma menina está perdida no seu século à procura do pai', Gonçalo M. Tavares

Da 'nova vaga' de escritores portugueses, faltava-me conhecer Gonçalo M. Tavares. Não que concorde com essa designação por terem estilos semelhantes, porque não têm, apenas têm em comum os mundos negros (internos e externos) que procuram retratar. E talvez esta nem seja a melhor obra para poder dizer seja o que for sobre o autor - mas foi suficiente para me deixar levar pela escrita subtil e a história cinzenta.

Marius conhece Hanna por acaso, quando procura fugir de alguma coisa. Ela é uma menina com trissomia 21 que está sozinha, com um 'manual de instruções' que deve seguir e apreender, e que anda à procura do seu pai. Com Marius, vive uma aventura em que se perdem na busca pelo pai, descobrindo antes histórias, personagens e uma ligação muito forte e inesperada. Mais que isso, até: descobrem até onde podem ir as suas verdadeiras capacidades.

'Uma menina está perdida no seu século à procura do pai' é como uma viagem negra pelo mundo, acompanhada por uma forte viagem mental, das duas personagens, sem que nenhuma delas nos narre o que sente - com um narrador que nos mostra, em lugar de o dizer constantemente, o que lhes vai na cabeça. São personagens que nada têm a ver uma com a outra, com propósitos totalmente diferentes na vida, mas que não caem no cliché de simplesmente mudar a vida uma da outra pelo poder da amizade. Sentimos, antes, uma mudança de intenções, uma adaptação à realidade, uma fuga e uma busca constantes e a descoberta de si mesmas.

"Olhando para Hanna, para a sua postura de aceitação de tudo, uma postura quase religiosa, mística, olhando para ela, ali, na carruagem, via como seria impossível explicar-lhe que eu estava em fuga - e que uma pessoa que se quer esconder não pode, não está em condições de ajudar outra a procurar alguém."

No caminho - o caminho é sempre mais interessante que o destino - conhecem personagens cheias de segredos, histórias; personagens que procuram perpetuar o seu legado, que querem ser ouvidas, que querem manter viva a memória colectiva. O autor leva-nos a uma Berlim cheia de história(s), a um ambiente de um quase pós-guerra, embora já muito afastado, no qual a memória da guerra está muito presente nas personagens que dá a conhecer.

A obra tem aquele dom raro e genial de ser bonita, de ter os seus momentos mais descontraídos, e ao mesmo tempo de nos absorver pelo dramatismo, pela profundidade da narrativa e destes dois protagonistas que, juntos, embora em separado, nunca chegam exactamente ao destino que queriam ao início - antes a outro lugar qualquer, no meio.

Fica o desejo de conhecer melhor Gonçalo M. Tavares - o futuro Nobel português, quiçá - e este seu talento de contar histórias com sensibilidade e muito encanto.

Comentários

  1. Olá Raquel! Gostei muito de ler a tua opinião; lembrou-me o quanto gostei de ler este livro e o enorme prazer intelectual que me proporcionou. Continuação de boas leituras,

    Miguel

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    1. Olá Miguel,

      Obrigada pelo comentário - e pela visita! Também gostei muito deste livro :))

      Boas leituras!

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