O Papagaio de Flaubert - Julian Barnes

"'Vou ser um rei, ou apenas um porco?', escreveu Gustave no seu Diário Íntimo. Aos dezanove anos parece tão simples como isto. Há a vida e depois há a não-vida; a vida ao serviço da ambição ou a vida de insucesso porcino."
'O Papagaio de Flaubert', Julian Barnes

O regresso a Julian Barnes foi também o regresso a Gustave Flaubert, à sua 'Madame Bovary' e a diversos aspectos curiosos que não conhecia da sua vida e obra. Sempre inspirador, o autor leva-nos por estas histórias, que por nós até podem ser inventadas, mas que aos poucos vão compondo esta personagem estranha e curiosa, que ofereceu ao mundo um dos romances mais belos e trágicos da literatura.

Geoffrey Braithwaite é um inglês fascinado por Gustave Flaubert, que se dirige à sua terra natal, Rouen, para ver o papagaio embalsamado que serviu de modelo ao autor durante a escrita de um dos seus livros. O que inicialmente é apenas uma viagem transforma-se numa verdadeira lição sobre o autor, explorando-se, em capítulos originais, o seu talento, as suas amizades e romances, os seus defeitos, vaidades e medos. O amor, também - o seu pela mulher Ellen, que morreu recentemente, e o de Flaubert e Louise Colet. 'Tudo para concluir que a vida verdadeira é a vida que vem nos livros. Porque é a única que se pode interrogar'.


Ao longo destas páginas, sempre irónico, em homenagem a Flaubert, mas também sentido, sempre que necessário, Julian Barnes faz listas de animais importantes na vida e obra de Flaubert, cria um dicionário de termos sobre ele, faz uma longa cronologia de factos da sua existência e leva-nos por outros tantos que se dizem sobre ele, que outros escrevem sobre a sua pessoa e que ele próprio investiga, a sério ou apenas na sua imaginação, sobre esta personagem misteriosa e maravilhosa.

"Dizia que havia três condições prévias para a felicidade - estupidez, egoísmo e boa saúde - e que das três só tinha a certeza de possuir a segunda. Discuti, lutei, mas ele queria acreditar que a felicidade era impossível; isso dava-lhe não sei que estranha consolação."

A fixação em Flaubert vai para além da paixão pela sua obra, pela sua ironia característica, pela forma de ver a vida - é uma obsessão não necessariamente negativa pela sua história, pelo que ele representou, pela sua genialidade. Não se foca demasiado no julgamento a propósito de 'Madame Bovary', coisa que temi. Procura antes explorar momentos geniais menos conhecidos, sobretudo a questão do papagaio que pode, ou não, ser aquele que George vai ver a Rouen. A descoberta do papagaio verdadeiro que inspirou o escritor parece de extrema relevância, por dar o mote para toda esta reflexão - mas será assim tão importante saber?

É mais um pretexto para o protagonista se identificar com alguns destes momentos da vida de Flaubert, nomeadamente no que diz respeito à sua mulher, Ellen, e à paixão por Louise Colet, que ganha, também ela, voz num dos capítulos de Barnes. A recusa da felicidade de Flaubert, como a de Bovary, que atravessa todo o livro - a busca constante de algo mais, a insatisfação permanente e impermeável - , aproxima-os, de certa forma, numa personalidade que se dá facilmente a paixões, que apesar de tudo ama profundamente, embora nem sempre veja esse amor pelas pessoas e as coisas (bem) retribuído.

"será que o leitor perfeito, o leitor total existe? (...) A minha leitura poderia ser inútil em termos de história da crítica literária; mas não é inútil em termos de prazer. Não posso provar que os leitores leigos têm mais prazer nos livros que os críticos profissionais; mas poso apontar-vos uma vantagem que temos sobre eles. Podemos esquecer."

Escrito com humor, com sentimento, 'O Papagaio de Flaubert' questiona-se, questiona o leitor, o próprio texto, os críticos, os amigos e amantes de Flaubert, as suas personagens, o passado de ambos os protagonistas desta história. Não nos deixa propriamente seguir um fio condutor, uma história com princípio, meio e fim, mas ao longo de tudo o que se conta e partilha há uma evolução, uma aprendizagem: de que nem sempre saber tudo nos torna mais felizes; de que é impossível sabermos tudo e sentirmos tudo e sermos tudo; de que a felicidade, porque vem nos livros, vem das pequenas coisas, e temos de ir aprendendo a viver tendo-a como parceira e não inimiga.

"Ellen. A minha mulher: alguém que eu sinto compreender pior do que um escritor estrangeiro morto há cem anos. Isto é uma aberração ou é normal? Os livros dizem: ela fez isto porque. A vida diz: ela fez isto. É nos livros que as coisas nos são explicadas; na vida não são. Não me surpreende que algumas pessoas prefiram os livros. Os livros dão um sentido à vida. O único problema é que as vidas a que eles dão sentido são as vidas dos outros, nunca é a nossa."

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